Folha de S. Paulo
Novo futuro passa pela organização local, cooperativa, solidária e popular
Vivemos num mundo em profunda mudança. Há um aumento da desigualdade e da concentração de riqueza em grande parte do globo acompanhado da hegemonia do capital financeiro improdutivo. Os ataques à democracia, ao Estado de bem-estar social, às políticas públicas, à ciência, aos direitos trabalhistas e aos direitos humanos se somam a uma revolução nas comunicações que afeta a subjetividade, fortalece o individualismo e dissemina a desinformação. Como se isso não bastasse, o aquecimento do planeta nos coloca diante de uma crise ambiental sem precedentes.
Nesse contexto, o Brasil carrega suas
especificidades: as marcas de mais de 300 anos de domínio colonial e mais de
350 anos de trabalho escravizado de africanos. Foi o país das Américas que mais
recebeu africanos escravizados. Esse passado ainda se reflete na profunda
desigualdade social, econômica e territorial, que está entre as maiores do
mundo. Ela é especialmente extravagante nas cidades, onde vivem mais de 85% da
população, sendo que 30% do total em apenas 10 regiões metropolitanas. É nelas
onde as questões do cotidiano são mais sentidas: falta de saneamento básico,
mobilidade que impõe custo alto e tempo excessivo nos transportes, violência decorrente
da ausência do Estado e presença de grupos armados nas periferias, entre muitos
outros problemas. Mas é na falta de acesso à
moradia legal, adequada e bem localizada que reside o maior dos
problemas.
A informalidade ou ilegalidade na produção
das periferias, especialmente nas metrópoles, é mais regra do que exceção. Leis
e planos avançados convivem com uma realidade atrasada, favorecendo um mercado
imobiliário restrito à minoria da população e altamente especulativo. Expulsa
das áreas valorizadas pelo mercado formal, sem acesso a uma política
regular de moradia social, essa população ocupa áreas ambientalmente
inadequadas ou lotes irregulares e constrói sua própria moradia. Essa forma de
produção da habitação para as camadas de baixa renda é causa das frequentes
tragédias ambientais relacionadas a enchentes e desmoronamentos.
Apesar da regressão social, econômica e
ambiental, podemos vislumbrar um caminho de esperança ao trazer de volta a
memória de uma experiência vivida num passado recente: o ciclo das prefeituras democráticas e
populares. Esse ciclo aconteceu principalmente entre 1978 e o final
dos anos 1990, mas alguns governos municipais extravasaram esse período.
Ele foi marcado por muita participação social
nos bairros e propostas governamentais inovadoras, originais e adequadas à
nossa realidade de país periférico do capitalismo. Algumas das políticas
públicas municipais desenvolvidas nesse período ganharam visibilidade mundial:
orçamento participativo; mutirões habitacionais, urbanização de favelas e
regularização fundiária; corredores de ônibus, tarifas sociais e tarifa zero
nos transportes públicos; centros de educação em tempo integral (CEUs, Cieps);
segurança alimentar e restaurantes populares; centros de cultura...
O SUS começou a ser implementado nesse
período. Foi quando se deu também a redemocratização do país e a conquista da
Constituição Federal de 1988. Dentre os governos municipais do ciclo que
ficaram conhecidos mundialmente podemos citar Luíza
Erundina, em São Paulo (1989), Olívio Dutra,
em Porto Alegre (1989) e Patrus
Ananias, em Belo Horizonte (1993). A lista é longa e cobre todas as
regiões do país.
Trata-se de recuperar a memória dessa
experiência histórica fomentando a participação capilarizada nos bairros,
escolas, praças e igrejas, em torno das dificuldades vividas no cotidiano e que
nos são comuns. Nessa proximidade, tece-se o pertencimento, afirma-se a
cultura, constrói-se a memória coletiva e luta-se contra as desigualdades
sociais em suas múltiplas dimensões.
A construção de um novo futuro para a
infância e a juventude, para a população negra, para as mulheres e para a sustentabilidade do
ambiente construído ou natural passa pela organização local, cooperativa,
solidária e popular.
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