CartaCapital
Desconfiadas considerações sobre as eleições
venezuelanas
Diante das incertezas e ameaças que pairam
sobre os resultados das eleições venezuelanas, ocorreu-me a ousadia de
relembrar episódios da história latino-americana na era da globalização.
Estimei que o abusado exercício – juntar as
pontas dos sucessos e fracassos latino-americanos – poderia esclarecer as
controvérsias travadas em torno das proezas de Nicolás
Maduro e seus oponentes.
A Venezuela era um “caso de sucesso” no
início dos anos 90. Sucesso celebrado em coro pelas instituições multilaterais
que gritavam alvíssaras, sempre entoadas nas vozes do FMI e do Banco
Mundial.
O sucesso espetacular da Opep no aumento dos preços após 1973 mudou a lógica das relações entre as empresas e o governo venezuelano, culminando na nacionalização da indústria petrolífera em 1976. Isso foi seguido por outra rodada de aumentos de preços após a Revolução Iraniana de 1978. O enorme influxo de receitas gerado pelos aumentos de preços levou o presidente Carlos Andrés Pérez a tentar acelerar a modernização da Venezuela. Pérez veio ao Brasil, em 1993, com um séquito de empresários, para celebrar e difundir o sucesso de suas políticas.
Os preços do óleo haviam crescido novamente,
por ocasião da Guerra do Golfo. O preço do barril Brent, que no início da
Guerra do Golfo, em 2 de agosto de 1990, era cotado a 22,25 dólares, teve um
aumento de em torno de 25% no fim daquele mês.
Já no mês seguinte, apresentava um aumento de
84,27%, chegando a ser cotado a 41 dólares.
São fortes os indícios de que essa
circunstância favorável fez aumentar a “confiança” na Venezuela, atraindo os
capitais que financiaram a habitual farra consumista da burguesia nativa e
apaniguados. A farra consumista era despejada em Miami, onde os ricaços
venezuelanos abasteciam (abastecem?) seus desejosos ímpetos.
A Venezuela há décadas sofre da maldição dos
recursos naturais, padece as dores da doença holandesa, como prefere Luiz
Carlos Bresser-Pereira. Nosso vizinho ficou pendurado nos ciclos de preços do
petróleo, com baixa diversificação econômica e dependência absurda das
importações de máquinas, equipamentos, bens de consumo duráveis e produtos
agrícolas e de origem animal. A Venezuela importa ovos do Brasil, para
felicidade de nossas galinhas.
Em meados dos anos 90, o programa de Pérez já
havia começado a afundar, acompanhando a derrocada dos preços do petróleo. Daí
para a frente, a Venezuela escorregou para o buraco da crise econômica e social
permanente. O descontentamento popular derrubou Andrés Pérez, vítima das
armadilhas embutidas na dependência do petróleo.
Na Argentina, Carlos Menem, responsável, em
parceria com o ministro Domingo Cavallo, pelo bem-sucedido programa de combate
à hiperinflação, foi reeleito em 1994, consagrado por ampla aprovação popular.
Ganhou fácil, atropelando os adversários. Ainda comemorava, quando o desemprego
começou a comer solto, chegando a maltratar cerca de 17% dos argentinos em
idade de trabalhar. Enquanto o desemprego subia, o prestígio de Menem
despencava. Depois da desvalorização brasileira de 1999, chegou ao fundo do
poço.
Nesse momento, ninguém seria capaz de apostar
um tostão furado na possibilidade de Fernando de la Rúa, o sucessor de Menem,
promover a reabsorção dos desempregados, no âmbito da política de câmbio
congelado e de repetidas doses de austeridade fiscal. As projeções indicavam
que a economia deveria crescer pouco, após uma forte recessão.
No Peru, Alberto Fujimori, além do sucesso no
combate ao terrorismo, empreendeu também um plano de estabilização com direito
a âncora cambial. Comprou alguns anos de prosperidade. Logo em seguida
sobrevieram os déficits na balança comercial, o crescimento lento, o desemprego
e a queda dos salários. Apesar do “protagonismo” proporcionado pela invasão da
casa do embaixador japonês, o que lhe valeu a gratidão dos americanos, Fujimori
não conseguiu evitar o desgaste provocado pela crise social em um país com uma
multidão de miseráveis. Tentou enfrentar o problema com medidas que destoavam
das recomendações do Consenso de Washington. Reajustou o salário mínimo em 40%
e prometeu botar dinheiro das privatizações nos programas
sociais. Excomungado pelos sacerdotes da Nova Globalização, Fujimori
lançou-se à segunda reeleição.
Nosso vizinho há décadas sofre da maldição
dos recursos naturais e depende das importações
Assustados com a ascensão do
“populista” Hugo Chávez na Venezuela, os americanos trataram de aviar uma
solução democrática para o Peru. Para derrotar o “neopopulista” Fujimori
apresentaram o economista Alejandro Toledo, um indígena de proveta, clonado nos
laboratórios das grandes universidades americanas e cevado nas carreiras
bem-sucedidas das chamadas instituições multilaterais com sede em Washington.
Caixas de ressonância do bombardeio ideológico executado pela mídia “global”,
os “democratas” da América Latina entregaram-se à satanização de Chávez e de Fujimori,
execrados como populistas, manipuladores e fraudadores de eleições.
As investidas do establishment do Norte e do
Sul contra Hugo Chávez não deixam de ser curiosas: em seu primeiro mandato,
foram incapazes de provar que violou a legalidade democrática para sanear o
Judiciário e o Congresso. Passaram, então, a acusá-lo de usar os procedimentos
da democracia para praticar o populismo. Daí surgiram os democratas
“autênticos”, sempre preocupados com a “irracionalidade” do voto popular.
É sabido que Fujimori não poupou recursos
heterodoxos para vencer a sua primeira reeleição. Mas parece que, naquela
ocasião, teria praticado as malfeitorias em defesa da civilização ocidental e
cristã.
O jornalista americano William Pfaff escreveu
que o regime vigente nos Estados Unidos é a plutocracia. Plutocracia, como
sabem todos, é o governo dos ricos. Alexis de Tocqueville, autor do clássico A
Democracia na América já havia descoberto, sob o manto da democracia construída
pelos pequenos proprietários, a verdadeira natureza do poder real que iria
governar os irmãos do Norte.
O jornalista Pfaff sugere que, na aurora do
século XXI, a usurpação é total. O poder nos Estados Unidos continua sendo
exercido pelos ricos. Mas agora, como nunca, ele é exercido para os ricos de
todo o planeta. A grande proeza do ex-presidente Bill Clinton – além das
façanhas perpetradas com a rechonchuda Monica Lewinsky – foi a construção da
Internacional Capitalista, ou seja, a imposição dos interesses da alta finança
americana em todo o mundo, com o aplauso e proveito dos endinheirados do
planeta. •
Publicado na edição n° 1322 de CartaCapital, em 07 de agosto de 2024.
4 comentários:
Enquanto a esquerda detém o “monopólio das virtudes” o “inferno são os outros”…
Todo malabarismo retórico é válido pra tentar justificar uma visão de mundo antiquada e apaixonada
Excelente texto! Certamente não agrada aos colunistas mercadófilos, que veem nos EUA o exemplo máximo da Democracia, mas onde um canalha exemplar como Trump é eleito e pode governar DE DENTRO DUMA CELA e onde o candidato mais votado NÃO é o eleito.
Daniel é um FDP², imagem virtual de Beluzo idem. MAM
Equilíbrio e sensatez que é bom....
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