quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Nicolau da Rocha Cavalcanti - A grande ausência na política brasileira

O Estado de S. Paulo

Ao tratar cidadania e economia como realidades antagônicas, a política brasileira torna-se escandalosamente disfuncional

Temos no Brasil liberdade política e pluripartidarismo. No entanto, parece haver uma grave lacuna em nosso espectro político-partidário: não se encontra facilmente quem defenda a cidadania e, ao mesmo tempo, um ambiente saudável de negócios. Em toda eleição, o eleitor tem de fazer uma escolha um tanto absurda entre as duas coisas, como se elas fossem incompatíveis.

É constrangedor. Se considero, por exemplo, como um aspecto central do desenvolvimento civilizatório uma polícia que atue dentro da lei e esteja sob estrito controle do Estado – que não seja racista, que não se sinta autorizada a realizar chacinas, que não seja politizada, que atue profissionalmente –, terei de escolher candidatos que desprezam afrontosamente princípios básicos de política econômica e do ambiente de negócios.

Ora, as duas realidades são compatíveis. Na verdade, exigem-se mutuamente. Onde viceja uma polícia violenta não há cidadania, não há segurança jurídica, não há segurança pública. Há barbárie. Há prevalência da lei do mais forte. Há deturpação do poder estatal. É impossível construir um ambiente de negócios saudável num cenário sob essas luzes.

Outro campo onde aflora uma artificial contradição – não existe, a rigor, contradição nenhuma – é na educação pública. Se entendo que é fundamental para o País cuidar bem de suas crianças e jovens, que a imensa maioria deles está na rede pública e que, portanto, é preciso investir os melhores recursos (humanos e financeiros) na educação pública, terei na prática de escolher candidatos que ignoram escancaradamente a perspectiva de quem investe e contrata, de quem atua na iniciativa privada com seu próprio negócio.

Não estou falando da defesa infantil – injusta e perversa – do mercado, no sentido que a chamada new right propõe. Na verdade, entendo que essa turma é parte direta do problema, ao conceber o liberalismo apenas como doutrina econômica, numa chave imediatista e interesseira, inteiramente diferente do liberalismo clássico, entendido como doutrina política com uma proposta de inclusão (de pessoas e direitos), não de exclusão.

Refiro-me a uma compreensão responsável e madura da vida econômica, que exige regulação, como todos os campos da vida social, mas não estrangulamento, não ignorância, não populismo.

Mas o problema também está, isso é evidente, no outro lado do campo político, com sua visão estreita da vida social e econômica. De forma reiterada, a esquerda no Brasil tem colocado a defesa dos direitos da população mais vulnerável em oposição à racionalidade econômica e à construção de um ambiente saudável de negócios, numa negação infantil – também injusta e perversa – de fatos básicos da vida real.

No Brasil, votar em candidatos do campo progressista é ter de fazer vistas grossas para uma série de negacionismos na área econômica, bem como para muitos preconceitos e ignorâncias relativos à atividade empresarial. Sobre o tema, ver o artigo O Brasil invisível aos olhos da esquerda (Estadão, 5/6/2024). O ponto é: não precisaria ser assim, não deveria ser assim.

Ao tratar prioridades complementares como realidades antagônicas, a política brasileira torna-se escandalosamente disfuncional, pois não conseguimos enfrentar os problemas nacionais de maneira consistente. Com essas políticas parciais, estamos sempre, ao menos, alimentando parcela considerável de nossas deficiências.

Além de ser devastadora para a imensa maioria da população – profundamente vulnerável, é quem sente na pele, de forma mais intensa, os problemas nacionais –, tal disfuncionalidade transmite a perigosa mensagem de que a política teria sempre uma dimensão de exclusão e de parcialidade. Ela se torna uma resposta frágil e insuficiente, o que é devastador no médio e longo prazos. As pessoas se desinteressam pela política ou, o que pode ser ainda pior, vão buscar respostas fora da política democrática.

Não ignoro a existência de nomes na política nacional que tentam suprir essa lacuna, trabalhando para promover uma política coordenada, de alcance mais amplo. No entanto, infelizmente, eles são ainda tratados como irrelevantes, como ingênuos, como sonhadores, como pessoas incapazes de vencer as eleições. Ou seja, não é que não tenhamos caminhos para superar o que me parece ser uma das maiores deficiências nacionais. Mas estamos sabotando, de partida, pessoas competentes e responsáveis que tentam fazer uma política diferente.

Sejamos honestos. O problema não é Jair Bolsonaro. O problema não é Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez ele esteja mais próximo da nossa calçada, da nossa janela, do nosso celular. Talvez nós mesmos vejamos, na prática, desenvolvimento social (cidadania) e desenvolvimento econômico como realidades separadas, que não se exigem mutuamente. Talvez achemos que apenas um dos aspectos precisa ser cuidado e que o outro viria como uma decorrência necessária do primeiro. Por quanto mais tempo continuaremos acreditando nessa visão que é desacreditada todos os dias pelos fatos? Dez anos? Cinquenta anos? Duzentos anos?

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito interessante e bem argumentado!