Valor Econômico
Participação de Braga Netto sugere contaminação do golpismo com métodos de facção criminosa
Dos fatos descritos pelo relatório da Polícia
Federal, um dos mais preocupantes para o futuro das Forças Armadas não é apenas
a proporção de indiciados com patente das Forças Armadas - 25 de 37. O número
mostra que se ainda não é possível dizer que tenha havido uma tentativa de
golpe militar, se está mais perto de se conhecer uma tentativa de golpe de
militares, mas o relatório não para aí.
Ao comparar o cerco que os militares
envolvidos fizeram dos alvos e aquele dos assassinos de Marielle Franco e
Anderson Gomes, a PF mostra o trânsito dos mesmos métodos utilizados entre o
crime organizado e o golpismo. Não se trata apenas de uma “transferência de
tecnologia”. A presença do general Walter Braga Netto nos dois eventos sugere
que esteja em jogo uma contaminação.
Antes de ocupar o Ministério da Defesa, a Casa Civil do governo Jair Bolsonaro e a vaga de vice na chapa à reeleição do ex-presidente, Braga Netto foi o interventor na segurança pública do Rio de Janeiro. A nomeação para o último posto que ocupou na ativa foi do ex-presidente Michel Temer.
O governo Temer, que sucedeu a derrubada da
ex-presidente Dilma Rousseff, começou a escancarar os poderes civis para os
militares com a primeira nomeação de um fardado para o Ministério da Defesa. E
foi com a segurança pública fluminense sob o comando de Braga Netto, por meio
de uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem, que a vereadora e seu motorista
foram assassinados.
A insistente recorrência às Forças Armadas
por meio de GLOs para sanar crises na segurança pública em todo o país não
apenas não solucionou o problema onde quer que tenham atuado, como, a se fiar
pelo relatório em questão, proporcionou uma contaminação dos métodos militares
pelo crime.
A Polícia Federal diz que o monitoramento dos
alvos - o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice, Geraldo
Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes - teve
início depois de reunião na casa de Braga Netto em 12 de novembro de 2022, um
mês antes da diplomação de Lula e Alckmin.
O monitoramento foi acompanhado de perto por,
pelo menos, um participante desta reunião, Mauro Cid. O tenente-coronel não era
apenas ajudante de ordens de Bolsonaro. Era um integrante das Forças Especiais,
grupo de elite do Exército, treinado para operações de contraterrorismo e
sabotagens.
Os oficiais envolvidos são todos coronéis do
Exército: Rafael Oliveira, Hélio Ferreira Lima, Rodrigo Azevedo e Marcelo
Câmara. O primeiro era major à época dos fatos e apenas o último estava na
reserva. Valeram-se de técnicas para escamotear a operação como o cadastramento
dos celulares usados em nome de terceiros.
A “transferência de tecnologia” dos
assassinatos do Rio para os atentados planejados em Brasília é atestada pelos
investigadores da PF a partir de um documento chamado “Apostila Anonimização”,
com a análise da investigação do caso Marielle Franco, encontrado em arquivos
de Rafael Oliveira.
O documento expõe as razões pelas quais a
operação deve ser escamoteada: “As autoridades e investigadores forenses irão
munir-se das mais variadas formas para desvendar a autoria dessas ações. Uma
dessas formas é analisando todos os fatos, motivos, circunstâncias, locais, bem
como investigando se há qualquer ligação entre os dados coletados, a fim de se
chegar a alguma dedução que aponte ao autor”.
O texto menciona a técnica de “anonimização”
prevista na doutrina das “Forças Especiais”, grupamento dos “kids pretos”, mas
não apenas. Agrega outras tecnologias e dá nome aos bois - “Um exemplo bastante
conhecido da utilização dessas técnicas ocorreu na elucidação no caso do
assassinato da vereadora Marielle Franco” - antes de passar a expor todas as
pistas seguidas pelos investigadores para chegar aos assassinos: o registro das
antenas de celulares de quem estivesse na área de cobertura e as pessoas para quem
esses aparelhos telefônicos anonimizados haviam feito ligações. Foi assim que
se chegou a Ronnie Lessa, cujos dados, em nuvem, mostrava o monitoramento de
Marielle”.
Em nota divulgada na noite do sábado, Braga
Netto repudiou o relatório da PF e disse que se manteve leal a Bolsonaro até o
fim. Um alto oficial do Exército que atuou na intervenção do Rio vê “forçação
de barra da PF” e diz que o texto encontrado nos arquivos do coronel do
Exército, na verdade, se baseia no livro do delegado da Polícia Civil do Rio,
hoje investigado pela morte da vereadora e de seu motorista, Giniton Lages,
que, em seu livro “Quem mandou matar Marielle” (Matrix, 2022), revela como os
criminosos escamotearam a ação e como a polícia os descobriu.
Dos oficiais presos, apenas o coronel Rodrigo
Azevedo estava no G20 produzindo um relatório sobre a Operação da Garantia da
Lei e da Ordem no Rio, mas o relatório da PF mostra que seu aprendizado técnico
se deu em outra GLO do Rio. Tudo isso sob o duplo comando de Braga Netto, no
Rio, em 2018, e em Brasília, em 2022.
A mitigação do envolvimento de militares na
segurança interna é visível no governo Lula, mas outras mudanças não avançaram,
a despeito das inequívocas credenciais legalistas de generais que hoje comandam
o Exército, como Tomás Ribeiro de Paiva e seu chefe do Estado-Maior, Richard
Nunes, retratados como “melancias” pelas redes sociais da extrema-direita.
A mentalidade golpista dos oficiais
indiciados foi forjada em academias que mantêm currículos, em grande parte,
blindados à redemocratização do país. Apenas este ano, com o general Richard
Nunes na chefia do Estado-Maior do Exército, adotou-se a “Diretriz estratégica
de ética profissional e de liderança militar do Exército brasileiro 2024-2027”
em que o tema é indiretamente tratado.
“Para atingir o objetivo de desenvolver o
pensamento crítico do militar, com base nos preceitos da Ética profissional,
para adequar-se ao ambiente virtual, visando a dotar o integrante do Exército
Brasileiro de maior e melhor capacidade para avaliar, filtrar e lidar com as
questões morais que se apresentarão em seu dia a dia, diante do incontrolável
fluxo de estímulos que ele recebe”, diz o texto, que propõe inserir nas
revisões curriculares periódicas, as concepções da diretriz, mas parece ter
como norte a influência das redes sociais sobre a tropa. Nunes, autor da
diretriz, era o chefe da Comunicação Social do Exército quando a Força
restringiu o uso de redes sociais.
A restrição da ocupação de cargos civis por
militares, outra mudança que se pretendia fazer, também estancou. A proposta
governista ao Congresso se limitou a mandar automaticamente para a reserva os
militares derrotados em eleições. E, finalmente, a existência de militares da
ativa, 14 dos 25 indiciados, demonstra que o Exército não dispõe de meios
eficazes para impermeabilizar suas tropas à infiltração golpista.
Na explicação de um integrante do Alto
Comando do Exército, ainda que a inteligência da Força disponha de informações
sobre a atuação na clandestinidade de integrantes de seus quadros só poderia
fazer uma investigação com quebra de sigilo, por exemplo, com autorização da
justiça militar. Do contrário, o procedimento limita-se a uma sindicância de
poderes limitados.
No caso dos militares em questão, no entanto,
nem investigação nem sindicância foram abertas porque, segundo o Exército
informa, não havia indícios. A atuação do grupo sob o comando de Mauro Cid
deu-se por meio de relações pessoais construídas à época de formação dos
oficiais nas academias militares.
Pelo menos dois oficiais da ativa indiciados,
o general Nilton Diniz Rodrigues e o coronel Fabrício Moreira Bastos, tiveram
uma promoção e uma remoção decididas neste governo. Rodrigues, que integrou o
gabinete do ex-comandante do Exército, Freire Gomes, tornou-se general de
brigada em março de 2023, em promoção decidida pela reunião do Alto Comando do
Exército de janeiro daquele ano. Hoje comanda a 2ª Brigada de Infantaria da
Selva, posto estratégico do Comando Militar da Amazônia, em São Gabriel da Cachoeira
(AM).
Já Bastos assumiu como adido militar do
Brasil em Tel Aviv em junho de 2023, posto cuja permanência é de dois anos. O
Exército cogita afastar ambos dos cargos e colocá-los à disposição do
inquérito. Ao indiciá-los, a Polícia Federal tornou-os suspeitos de
participação na trama golpista. Ainda não dá para dizer se serão denunciados
pela Procuradoria-Geral da República e, menos ainda, se, denunciados, se
tornarão réus no Supremo. O carimbo de indiciado, porém, é suficiente para
mostrar que a corporação que tem o monopólio legítimo da força tem integrantes
suspeitos de a usaram contra o próprio Estado.
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