quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A utopia existe


Roberto DaMatta
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Se você é um neoliberal relativamente descrente das utopias, saiba que elas estão mais vivas do que nunca. Onde? Na propaganda eleitoral, é claro, onde um enlouquecido sistema de proporções que desafia o bom senso é compensado.

Vendo-a, você se questiona por que todos esses projetos maravilhosos jamais foram realizados. Mas você logo percebe que - tirando as exceções de praxe - o que os candidatos oferecem são promessas. São planos ideais, musicados em samba, falados ao sabor da empatia e do sorriso, sem nenhuma avaliação de sua exeqüibilidade. E, como o candidato sabe que, uma vez "empossado", ninguém vai cobrar-lhe, porque, afinal, "aquilo foi por conta da campanha eleitoral", aquele instante de fantasias cívicas e sociais, começando pelas alianças partidárias, não é exagero ligar eleição e carnaval.

Aproximar esses momentos é o direito à licenciosidade. É o fato de o candidato (tanto quanto o folião) poder criticar o poder estabelecido sem levar troco. Quanto menor for o prestígio do candidato e quanto mais alto é o cargo que pleiteia, mais carnavalizada será a sua campanha. Como é que esse "pé-rapado-analfabeto" quer ser presidente, governador, deputado, prefeito ou vereador? Como é que esse "joão-ninguém" ousa demonstrar esse rasgo de igualdade e tem o desplante de criticar a pessoa que ocupa um cargo obviamente "superior" e que tem sido possuído por uma autoridade - "alguém" que, bem ou mal, "entende" alguma coisa? Eneas, Deus o tenha, foi um formidável exemplo. Lula foi outro, daí o seu imenso peso simbólico, pólo no qual se assenta uma estrondosa capacidade para tudo dramatizar, logo traduzida em popularidade. Lula é a figura que ousou desafiar a elite brasileira e hoje tem o poder de fazê-la lamber-lhe os pés e beijar-lhe a mão. Quem não se lembra dos avisos desavisados de catástrofe que a sua eleição iria trazer para o sistema?

Em diferentes níveis, outros ilustres desconhecidos caem na mesma plataforma simbólica, provando como, no Brasil, a desigualdade é um valor. De fato, se nossa vida social fosse fundada na igualdade, não "causaria espécie" um desconhecido disputar qualquer cargo público. Mas como conciliar essa liberdade que eventualmente se iguala com um sistema que também se pensa como graduado e constituído de pessoas maiores e menores? Uma sociedade segmentada entre pessoas que podem e indivíduos que não podem?

Entre os poderosos e os que pretendem entrar nesse campo que a todos abre as portas da elitização aristocrática, essa nobreza política - baseada no "quem foi rei, sempre é majestade" -, é preciso cautela. Daí esse estilo de "ser candidato" abusando de promessas, mentindo sobre realizações pessoais ou simplesmente expondo programas políticos realistas. Opção menos rotineira, mas que vai ganhando corpo em cada disputa eleitoral.

Penso que os jingles em ritmo de samba de breque, na voz bem marcada de um sambista que acompanha os candidatos, exprime bem a dificuldade de levar a campanha para o terreno mais sério e desafiador do civismo, fazendo que ela fique no terreno intermediário: entre projetos e promessas inconseqüentes. Ademais, entendo que não deve ser fácil fazer uma campanha eleitoral marcando posições políticas, mas preservando o lado pessoal e os eventuais laços de família ou de amizade que ligam os candidatos entre si. O nosso estilo aristocrático de vida, que logo transforma o candidato pobre, renunciante do mundo, num sofisticado baronete intoxicado de amor por si mesmo, não tem muitas afinidades com o espírito crítico que necessariamente permeia a campanha eleitoral num sistema liberal. Daí o velho dilema: como apresentar o programa e, radicalizá-lo, sem falar em nomes e pessoas? Não é por outra razão que esse momento se caracteriza pela eventual violência alimentada do desequilíbrio entre o programático (sempre, crítico, denunciador, acusatório e fantasioso) e o pessoal (sempre ponderado, realista e concreto). A saída, como estamos sendo obrigados a assistir no "horário eleitoral", é uma mistura de programas de conteúdo cívico sério, que atacam os problemas da cidade ou do estado e de candidaturas messiânicas e carnavalescas que prometem tudo realizar. Nos Estados Unidos, eles - pasmem com quem viu e vê - rezam e cantam o hino nacional; aqui, a invocação carnavalesca relembra que a troca de lugar só pode mesmo ocorrer num tempo extraordinário, provavelmente para, depois da tempestade de votos, tudo continuar como está.

Daí, a combinação estranha de programas e promessas, tocadas ao familiar sambão que emoldura o postulante no esforço de ligá-lo ao único festival brasileiro nacionalmente popular, mas que ninguém, exceto algum antropólogo maluco, deve levar a sério.

PS: Quem achar que sou vago e estou obviamente errado, recorra aos economistas e contorno que, nos últimos dias, descobriram que o responsável pelas tais "leis imutáveis do mercado" é mesmo o estado nacional. Seria bom intercalar Hayek com Polanyi e Hirschman.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

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