quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Passaporte para o futuro

Roberto DaMatta
DEU EM O GLOBO


O velho passaporte, inventado pelos revolucionários franceses para deter e guilhotinar nobres reacionários que tentavam justamente passar pelos portos da França, faz manchete associado a uma outra ideia arcaica: a do Brasil como país do futuro. Assim tem reiterado Lula, repetido por sua candidata, a chefa da Casa civil, quando profetizam que o pré-sal é o passaporte para o futuro do Brasil.

Atingimos um esplêndido clímax modernizador — pois quinze anos de continuidade de política monetária associada a mercado, competição eleitoral liberal e imprensa livre têm produzido excelentes resultados —, mas um arcaico salvacionismo faz o governo paradoxalmente ressuscitar duas noções reacionárias de nossa tradição nacionalista. Eis, de volta, o ideal do Brasil como país do futuro e a noção do passaporte como diploma da entrada do Brasil no tal concerto das nações tidas como avançadas.

Essas ideias novas, mas são apenas retornos de uma antiquíssima ideologia portuguesa que marcou profundamente a história brasileira, deixando uma cicatriz que, não tendo sido vista e devidamente politizada, volta todas as vezes que estamos prestes a romper certas barreiras. No caso em pauta, trata-se de como lidar com a descoberta de um grande campo petrolífero cujo uso competente traria a famosa redenção (o clássico passaporte) de todos os nossos males.

No passado, quando o Brasil era uma abandonada feitoria, ponto de encontro de aventureiros e criminosos cujo objetivo era enricar e voltar para a terrinha, onde ocupariam um posto superior nas implacáveis hierarquias locais, a política lusitana tinha como alvo esconder as riquezas do Brasil de modo a não despertar a cobiça internacional.

Justo o que tem sido anunciado como grande novidade. De fato, como um reino pequeno e fraco como Portugal poderia colonizar um mundo que ia da Ásia à América meridional, passando pela África? A política de proteção das riquezas da terra largamente desconhecida era um dogma viável, dogma que certamente desenhou o nosso bem estabelecido complexo de vira-lata. A síndrome segundo a qual é melhor deixar a riqueza enterrada do que explorá-la associado a “estrangeiros” que somente querem nos espoliar foi uma política e depois passou a ser um dos elementos-chaves de um nacionalismo que privilegiava certos grupos não por sua competitividade ou competência, mas pelos seus elos pessoais com gente do governo.

Neste contexto, convém lembrar que o livro de Antonil, “Cultura e opulência do Brasil”, publicado em 1711, foi proibido exatamente com esse argumento. Mais do que um documento sobre uma obscura dialética de mercadorias e escravos, o que o trajeto da obra revela é essa dimensão de impotência e fraqueza. Essa visão hierarquizada que, além de permear as relações internas, se projeta mundo afora, escalonando países que seriam sempre e invariavelmente mais fortes, inteligentes e poderosos que nós.

Deste ângulo, seríamos também o título de um outro livro, o de Stefan Zweig: “Brasil, país do futuro”. Estigma, como sugere o prefaciador e biógrafo de Zweig, Alberto Dines, com sua precisão e brilho habituais. Marca de Caim que ao longo do tempo (o livro foi publicado em 1941), e com a devida supressão do artigo indefinido, foi transformado numa pífia racionalização para tudo: da miséria decorrente de uma estrutura social hierárquica e aristocrática; do autoritarismo civil e militar ou popular que ficaria no poder até o povo aprender a ser democrático ou gordo; a um projeto de volta a estadomania; ou de um plano milionário de compra de armas para justamente defender nossas riquezas contra o demônio estrangeiro quando, de fato, temos de defendêlas mesmo é dos nossos administradores públicos irresponsáveis, tão ou mais vorazes e destemidos do que quaisquer alienígenas. Deste modo, se havia miséria, roubalheira, mentira, nepotismo, incompetência e outros bichos, paciência. Éramos (e ainda somos) um Brasil que só tem futuro! Esse futuro que compensa pelo terrível e vergonhoso presente que vivemos.

Chegamos ao ponto. Quantos passaportes para o futuro teve o Brasil ao longo de sua história? Da cana-de-açúcar que adoçou o mundo; ao fumo; ao ouro; aos diamantes; e ao velho e saboroso café? Até a carne, o frango, a soja, o etanol, os aviões e os automóveis? E o que temos feito com todos esses passaportes que criam tanta prosperidade e riqueza senão escravizar os trabalhadores (e as pessoas comuns) e aristocratizar funcionários do Estado? A questão não é de pensar no présal apenas como passaporte para o futuro. O problema é o de, mais uma vez, usar o futuro como um modo de evitar as tarefas urgentes do presente.

O pré-sal só pode ser um passaporte para o futuro quando, por meio de uma grande revolução educacional e cívica, liquidarmos essa sociedade e esse Estado que docemente abriga as liturgias hierárquicas, porque continua idolatrando e, com a mesma força, resistindo a todas as igualdades

Roberto DaMatta é antropólogo

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