sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Sem defesa para a omissão

Maria Cristina Fernandes
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Nem na ditadura um acordo militar do porte daquele que foi assinado esta semana entre o Brasil e a França foi tão pouco debatido. O locus por excelência dessa omissão foi o Congresso Nacional. O episódio, contrariando as mais histéricas aparências, selou definitivamente, a nulidade da oposição.

Com a cumplicidade do noticiário, o Senado Federal conseguiu mobilizar durante seis meses a opinião pública em torno de seus malfeitos já esquecidos, enquanto em apenas dois dias sem holofotes, sob regime de urgência e por votação simbólica, aprovou autorização de crédito de R$ 25 bilhões para o programa do submarino nuclear e a compra de 50 helicópteros militares.

Não é preciso macaquear estrangeiros para lembrar que um aporte dessa magnitude, cujos primeiros desembolsos sequer estão previstos na proposta orçamentária de 2010, não é aprovado num país que se orgulhe de funcionar sob regras democráticas.

O Brasil de dois ditadores - Getúlio Vargas e Ernesto Geisel - abrigou uma discussão mais plural dos dois tratados que, na opinião de um dos maiores especialistas em história militar do país, o professor João Roberto Martins Filho (Ufscar), se lhe igualam: os acordos com os Estados Unidos, assinado em 1953, e aquele selado com a Alemanha em 1975.

A democracia tinha apenas sete anos quando os comunistas encamparam uma mobilização nacional contra o acordo com os americanos que, além de concessões à soberania nacional, previa o fornecimento de minérios atômicos do subsolo nacional aos Estados Unidos em plena escalada da Guerra Fria.

A campanha, embalada pelos protestos contra o envio de tropas brasileiras à Guerra da Coreia, correu o Brasil e, apesar da dura repressão do governo Vargas, chegou ao Congresso Nacional onde mobilizou os partidos de esquerda contra o PSD e a UDN, aliada ocasional de Vargas em sua fase pró-EUA.

O acordo foi aprovado mas não sem antes passar por debates radicalizados dentro e fora do Congresso. No dia seguinte, a União Nacional dos Estudantes decretou luto nacional. No Brasil de Lula, o acordo com a França foi comemorado em parada militar com a claque de estudantes bestializados pelo ´Fora Sarney´.

Em sua mensagem ao Congresso, Vargas acusara os movimentos contrários ao acordo de espraiarem o comunismo internacional disfarçados de pacifistas. Na era Lula, a omissão nem carece de disfarce.

Duas décadas depois, o acordo com os americanos seria denunciado por Geisel. O Brasil acabaria firmando um tratado nuclear com a Alemanha que permitiria ao Brasil desenvolver a tecnologia do urânio enriquecido.

A polêmica foi tamanha que a Câmara dos Deputados acabaria abrindo uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as denúncias de que o acordo não havia previsto uma destinação adequada ao lixo atômico nem dado garantias suficientes de que a energia nuclear seria exclusivamente de uso pacífico.

Em ambos os momentos, os militares, ao contrário de hoje, tinham preponderância no debate político. Desta vez, foi um ministro civil quem conduziu o acordo e, munido da estratégia de reaparelhamento das Forças Armadas, selou a supremacia da Defesa sobre as Pastas militares.

Useiro e vezeiro na subjugação do Congresso às conveniências do Executivo, passará aos anais como o primeiro civil a conduzir, sem a legitimidade do debate parlamentar, um acordo militar que redesenha o Brasil na geopolítica mundial.

Ao longo de sua brevíssima tramitação, à qual Jobim compareceu duas vezes sob raras interpelações, levantaram-se suspeitas que não são explicação suficiente para a omissão.

Acusou-se a maior empreiteira nacional, escolhida como parceira da estatal francesa que vai construir o estaleiro dos submarinos, de ter comprado o silêncio das centenas de parlamentares cuja eleição financiou.

Também se levantaram suspeitas sobre uma indústria nacional de helicópteros, em cuja fábrica de Minas serão construídos os helicópteros em parceria com os franceses, que teria zelosamente salvaguardado seus interesses junto a parlamentares da oposição e do governo.

Essa traficância de interesses, se existiu, não terá sido novidade no Congresso Nacional de Lula, Geisel ou Vargas. O que há de novo é que o Poder Legislativo galgou tamanha desimportância que os interesses contrariados pelo acordo não se deram ao trabalho de mobilizar suas bancadas no Congresso Nacional.

A menos que algum imagine que lobbies da indústria armamentista americana, alemã, russa e sueca possam ter escolhido o deputado Júlio Delgado (PSB-MG) como o único portador de seus queixumes.

Parece mais crível que os interesses contrariados pelo acordo tenham atuado diretamente junto ao Executivo e às Forças Armadas, sem o filtro da Casa que pretende representar a vontade popular.

O deputado Carlos Zarattini (PT-SP), ardoroso defensor do acordo desde o início da legislatura, estranhou a ausência de debates. "Não são parlamentares que se deixem levar por uma viagem, um jantar ou um vinho", diz, sobre a comitiva de parlamentares que foi à França a convite dos fabricantes beneficiados pelo acordo.

A segurança nacional, avocada pelos governistas, não cola como explicação para a unanimidade. Como toda política de governo, há espaço para controvérsias. A chance desse acordo vir a afirmar o Brasil para fora do eixo da hegemonia americana já seria suficiente para acirrar os ânimos que costumavam se radicalizar no Congresso entre tucanos e petistas em torno da política externa brasileira.

Perdeu-se a chance de um debate sobre as opções e o custo de uma estratégia de defesa para o Brasil. Se o acordo é tudo isso que a propaganda governista se orgulha em difundir - pela transferência de tecnologia e capacidade dissuasória do país do pré-sal - os brasileiros nunca o saberão.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

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