O que a sociedade deve esperar de policiais militares que, ao longo de sua formação, são obrigados por seus superiores a se sentar e a fazer flexões sobre o asfalto escaldante, que lhes provoca queimaduras nas mãos e nas nádegas?
Como esses soldados, submetidos a um treinamento cruel e humilhante, se comportarão quando estiverem patrulhando as ruas e atuando na "pacificação" das comunidades? Como uma instituição que não respeita os direitos de seus membros pode contribuir com a democracia?
Dar respostas a essas perguntas se tornou ainda mais urgente após a morte do recruta da Polícia Militar do Rio de Janeiro Paulo Aparecido Santos de Lima, de 27 anos, em novembro. Membro da 5ª Companhia Alfa, ele foi parar no CTI (centro de terapia intensiva) do hospital central da PM após ser submetido a um treinamento que mais pareceu uma sessão de tortura, no CFAP (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças).
Além de Paulo, outros 33 recrutas passaram mal e 24 sofreram queimaduras nas mãos ou nas nádegas. Segundo relatos de colegas, quem não suportava os exercícios sob a temperatura de 42 graus Celsius --a sensação térmica era de 50 graus Celsius-- levava um banho de água gelada ou era obrigado a se sentar no asfalto.
E o caso não é isolado. Após a morte de Paulo, o Ministério Público ouviu recrutas da 5ª Companhia Alfa. Eles confirmaram os castigos cruéis e contaram que os oficiais não davam tempo suficiente para que se hidratassem. Alguns tiveram que beber água suja na cavalaria. Segundo informações da enfermaria da unidade, alunos chegaram a urinar e vomitar sangue. O secretário estadual de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, classificou a morte como homicídio.
Até policiais experientes não resistem a esses treinamentos. Neste mês, na Bahia, os soldados Luciano Fiuza de Santana, 29, e Manoel dos Reis Freitas Júnior, 34, morreram após passarem mal num teste de aptidão física para ingressar no Batalhão de Choque. Outros precisaram ser hospitalizados.
A tragédia envolvendo o recruta fluminense e os policiais baianos, infelizmente, não é só do Rio e da Bahia, mas de toda a sociedade brasileira. Em todos os Estados do país, a PM é concebida sob a mesma lógica militarista e antidemocrática.
Ninguém precisa ser submetido a exercícios em condições degradantes e a castigos cruéis para se tornar um bom policial. Em vez de se preocupar em formar soldados para a guerra, para o enfrentamento e a manutenção da ordem de forma truculenta, o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a fortalecer a democracia e os direitos civis. A realização dessa missão passa necessariamente por mudanças na essência do braço repressor do poder público.
Desde as manifestações dos últimos meses em todo o país, quando os excessos da PM e a sua dificuldade em conviver com o regime democrático ficaram evidentes, o debate sobre sua desmilitarização se tornou urgente. A PM é uma herança dos anos de chumbo, uma força auxiliar do Exército. Mas o que nós precisamos é de uma instituição civil.
Nesse sentido, é fundamental que o Congresso Nacional aprove a proposta de emenda constitucional (PEC 51/2013) que prevê a desvinculação entre a polícia e as Forças Armadas; a efetivação da carreira única, com a integração entre delegados, agentes, polícia ostensiva, preventiva e investigativa; e a criação de um projeto único de polícia.
Esse debate deve envolver os próprios policiais e as organizações da sociedade civil. Essa proposta não significa estar contra a polícia, mas estar a favor dos servidores da segurança pública e da cidadania.
Marcelo Freixo, 46, professor de história, é deputado estadual pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) no Rio de Janeiro
Fonte: Folha de S. Paulo
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