O livro Sobre a China (da Editora Objetiva), do ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, termina de forma perturbadora: depois de lembrar que o século passado foi marcado por uma disputa pelo controle do comércio no Atlântico entre Inglaterra, a potência naval, e Alemanha, uma potência continental — o que levou a duas guerras mundiais —, conclui que o atual será pautado por uma disputa pelo comércio do Pacífico, para onde se deslocou o eixo da economia mundial. Agora, a potência naval são os Estados Unidos, e potência continental, a China. E ninguém sabe como isso vai terminar.
Lembra Kissinger que os chineses são "astutos praticantes da realpolitik". Em raras ocasiões, arriscaram embates de tudo ou nada, enquanto a tradição ocidental prezava o choque decisivo de forças. O jogo mais tradicional da China é o wei qi (pronuncia-se "uei tchi"), cujo tabuleiro tem uma grade com 19 posições e 19 linhas, que começa vazia. Cada jogador tem 180 peças, ou pedras, todas de igual valor. As pedras vão sendo postas de forma alternada em algum ponto do tabuleiro, na tentativa de cercar e capturar as peças do oponente, em múltiplas e simultâneas batalhas, em diferentes regiões do tabuleiro. O equilíbrio de forças muda progressivamente, até o adversário ficar imobilizado.
Enquanto no xadrez o objetivo é o xeque-mate, no qual o rei oponente fica numa posição em que ele não consegue se mover sem ser destruído, o wei qi é uma campanha prolongada. O primeiro adota conceitos clausewitzianos de "centro de gravidade" e "ponto decisivo" — luta-se pelo centro do tabuleiro. O wei qi ensina a arte do cerco estratégico, no qual o jogador se move pelos espaços vazios do tabuleiro.
O $urreal
Ontem, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, atribuiu à redução do dinamismo da economia da China e à decisão do Federal Reserve (FED), o Banco Central norte-americano, de fazer nova intervenção na economia dos Estados Unidos a responsabilidade pela instabilidade no mercado de câmbio, que levou o dólar a ultrapassar os R$ 2,40. Teme perder o controle da inflação por causa disso. Na última vez em que o FED atuou para reduzir os estímulos, retirou da economia norte-americana US$ 10 bilhões. No caso da China, a redução do crescimento desvaloriza as moedas em função das commodities. Até que ponto o $urreal das praias cariocas (cujos preços estão nas alturas) — olha aí o instinto animal de nossa economia informal! — não é um antecipação do que pode vir?
Na verdade, quem apostou na crise geral do capitalismo perdeu: com perdão do trocadilho, o Brasil não era o elo forte da globalização, ou seja, não rompeu a barreira da dependência pelo fato de ampliar o seu mercado interno em meio à crise mundial. Mas essa é outra discussão. O que interessa registrar são certos paradoxos de nossa estratégia de inserção no mercado mundial, que apostou nos países emergentes contra os países desenvolvidos. É o caso do Porto de Muriel, a 50 quilômetros de Havana, inaugurado segunda-feira pelo presidente cubano, Raul Castro, ao lado da presidente Dilma Rousseff, um justo orgulho para a engenharia brasileira. Terceiro porto da América Latina e o maior do Caribe, o porto recebeu do BNDES US$ 802 milhões em financiamentos para bens e serviços na sua construção. Na segunda etapa, mais US$ 290 milhões serão emprestados para a implantação da Zona Especial de Desenvolvimento de Mariel.
Como bem lembrou a colega Tereza Cruvinel na sua coluna de ontem, o empreendimento garantiu 150 mil empregos no Brasil e R$ 800 milhões em compras. Mas isso é consumo, não é formação de capital fixo, como em Cuba. Eis a pergunta que não quer calar: por que não se fez a mesma coisa com os portos brasileiros, que o governo recentemente privatizou e que estão subinvestidos. Neles foram aplicados apenas 7% dos US$ 218 milhões previstos, equivalente a US$ 15,5 milhões, ou seja, 15 vezes menos do que a média anual de Mariel, que tem capacidade 30% superior à do Porto de Suape, em Pernambuco, o maior do Nordeste brasileiro.
Diante do boicote econômico norte-americano a Cuba, justamente criticado pela presidente Dilma Rousseff, quem utilizará o Porto de Muriel e para quê? Cuba não produz minérios nem soja e milho, muito menos bens de consumo duráveis e não duráveis. Ora, o porto será um grande entreposto comercial da China, que o utilizará, via Canal do Panamá, para exportar seus produtos para as Américas do Sul e Central, países do Caribe e, claro, para os Estados Unidos. Quiçá o Brasil! O que a nossa economia ganhará com isso, nesse jogo entre ianques e chineses pelo controle do comércio mundial?
Fonte: Correio Braziliense
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