Em seu discurso no Fórum Econômico de Davos Dilma Rousseff tentou, ao que tudo indica, erigir um marco de referência para sua campanha. Como o fora a Carta aos Brasileiros, na qual o PT abandonou seu discurso avesso ao sistema financeiro internacional para facilitar o acesso de Lula à rampa do Planalto afastando a desconfiança dos investidores. E da Suíça Sua Excelência embarcou para Cuba para agradecer a Raúl Castro os médicos exportados para o Brasil e assim conquistar votos para candidatos oficiais combatendo as falhas da saúde pública no interior.
Há 12 anos, inspirado pela visão pragmática do ex-prefeito de Ribeirão Preto Antônio Palocci, que passou a coordenar o programa de governo do candidato petista na campanha presidencial após a morte do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel, Lula deu uma guinada de 180 graus na retórica econômica do PT. Com isso, acalmou o mercado inquieto e ganhou a eleição. Hábil, intuitivo e esperto, o ex-dirigente sindical apoiou seu compromisso nos pilares da austeridade monetária, do equilíbrio fiscal e da flutuação cambial ao nomear o banqueiro tucano Henrique Meirelles para a presidência do Banco Central.
E não ficou nisso: solidamente ancorado em seu proverbial bom senso, o antecessor, padrinho e fiador da atual presidente nunca estimulou nem permitiu que nenhum espírito santo da sua orelha esquerda desautorizasse a política, na prática, autônoma, da autoridade monetária nacional. Foi isso que amainou a procela que parecia inevitável caso prevalecessem os impulsos desenvolvimentistas e os flertes populistas com seus melodiosos, mas também venenosos, cantos de sereia. Nem mesmo a queda de Palocci no epicentro de um furacão de escândalos de corrupção e sua substituição pelo inexpressivo, e às vezes até caricato, Guido Mantega alteraram a rota singrada pela nau da economia, que correria o risco de ficar à deriva. E assim o País continuou prosperando e os eleitores garantiram seus dois mandatos e o triunfo de Dilma.
Já a sucessora de padim Lula de Caetés é mandona, voluntariosa e pouco afeita ao exercício da esperteza política. Embora Lula tenha sido mantido no alto posto de eminência parda, a gestão de rotina da política econômica, sob a insignificância de Mantega e a absoluta falta de brilho e de estilo próprio de Alexandre Tombini, um burocrata incapaz de suceder a Meireles à altura, independe da sensatez do profeta do ABC. Ao contrário, limita-se tão somente aos espasmos tirânicos de vontade da chefe geral, economista de formação acadêmica basal, mas sempre disposta a deitar regra em função do diploma. A Carta foi feita para a campanha e entrou na História. A peça de Dilma é mera fantasia de palanque.
No reino encantado de dona Dilma, "a inflação permanece sob controle. Nos últimos anos, perseguimos o centro da meta e trabalhamos para lograr esse objetivo". Trata-se de um logro de fazer o Dr. Pangloss corar de pudor. Pois pelo quarto ano consecutivo a inflação fechou 2013 acima do centro da meta, embora abaixo do teto preestabelecido de 6,5%. "Nosso sucesso estará associado à parceria com os investidores do Brasil e de todo o mundo" - é o doce sonho da chefe do governo. Com 13 procedimentos exigidos e 107,5 dias de prazo para abrir uma empresa, o Brasil está no 116.º lugar entre 189 nações no ranking "Facilidade para Fazer Negócios" do Banco Mundial. Quase um terço de executivos do mundo ouvidos em levantamento da KPMG apontou a complexidade tributária como maior obstáculo para investir no País.
Justiça seja feita, a presidente teve um momento de modéstia realista ao registrar a necessidade de investir muito mais em infraestrutura, lembrando que apoia as parcerias com o setor privado. No entanto, protecionismo, barreiras governamentais, questões políticas e incertezas na regulação põem o Brasil em 71.º lugar entre 148 nações, segundo o Fórum.
Após haver afagado na banca de peixes de Davos bolsos dos quais deverão sair doações para a campanha de sua reeleição, à qual é favorita, menos por competência própria do que por incompetência da oposição, Dilma foi a Cuba. Lá inaugurou a primeira etapa da construção do porto de Mariel, bancado por nós e para o qual doou mais US$ 290 milhões de mão beijada. Então, se não pôde fugir da obviedade de que é preciso investir mais para melhorar nossas condições rodoviárias, portuárias, aeroportuárias e de outros setores necessários à circulação de mercadorias, financiar um porto no qual nunca será embarcada uma saca de soja nacional é uma contradição. Na ocasião, atacou o embargo dos Estados Unidos a Cuba, uma decisão anacrônica e nada inteligente dos gringos, que só serve para reforçar a desculpa furada de que a situação deplorável da economia da ilha caribenha se deve à intransigência ianque. Sua posição é correta, mas óbvia e dispensável. Não parece lógico que os americanos corrijam tal erro só para lhe agradar. E o Brasil até tem cacife para sustentar Cuba, como antes o fizeram a União Soviética e a Venezuela. Mas para quê?
O aspecto mais surreal de sua visita ao canavial dos irmãos Castro, contudo, foi ter levado na comitiva o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, candidato petista ao governo paulista, e seu sucessor, Arthur Chioro, para os três agradecerem em coro o envio de paramédicos cubanos para preencher vagas do Mais Médicos nos grotões pátrios. Ora, esculápios são o maior produto de exportação da miserável Cuba e o Brasil paga o equivalente a R$ 10 mil por mês diretamente aos tiranetes locais por profissional importado, ficando para cada um destes um mísero troco. Trata-se de uma inversão na prática da mendicância: é a primeira vez na História que quem dá a esmola agradece ao mendigo. Ao anunciar mais 2 mil contratados em tais condições, a vendedora de peixe na Suíça comporta-se como receptadora de escravos no Caribe 125 anos após a Abolição.
*José Nêumanne é jornalista e escritor.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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