• Antes de querer ser pintor e querer ser poeta, eu, conhecido como Periquito, quis ser jogador de futebol
- Folha de S. Paulo / Ilustrada
Como o futebol é no momento o assunto de quase todos --senão todos-- os brasileiros, aproveito a oportunidade para fazer uma revelação: antes de querer ser pintor e querer ser poeta, quis ser jogador de futebol...
Sim, eu --também conhecido como Periquito--, o Esmagado, o Espírito, o Carroca e os demais jogadores de pelada da rua do Coqueiro.
É que, diferentemente desses outros, pensava eu que trazia o futebol no sangue, já que meu pai, Newton Ferreira, antes de se tornar quitandeiro havia sido centroavante da seleção maranhense.
Já contei num poema que o trouxe ao Rio para tratar de um câncer e que ele, ao descer do avião, falou: "A única vez em que estive no Rio foi com a seleção maranhense de futebol, em 1929. Fomos até recebidos pelo presidente da República, Washington Luís. No dia seguinte, enfrentamos a seleção carioca e perdemos de nove a zero. Saímos de campo debaixo de vaia".
Pois. Mas, quando garoto, ele me levava para assistir aos jogos de futebol. E assim foi que, muito cedo, comecei a jogar bola em frente ao Mercado Novo, onde já ele tinha uma quitanda.
Dessas partidas participava a molecada do bairro, e nela se destacavam Canhoteiro e Esmagado. Canhoteiro, filho de um casal que vendia mingau de milho e de tapioca ali mesmo no mercado.
Esse Canhoteiro é o mesmo que veio a se tornar ponta-esquerda do São Paulo Futebol Clube e foi convocado para a seleção brasileira. Não por acaso, era o ídolo do menino Chico Buarque, que até hoje sonha inutilmente em jogar futebol como ele.
Quando estava no auge da fama, Armando Nogueira, que era meu colega no "Jornal do Brasil", falou com Canhoteiro a meu respeito.
Ele nunca ouvira falar em Ferreira Gullar, mas, quando Armando lhe explicou que se tratava do filho do quitandeiro Newton Ferreira que jogava pelada com ele no Mercado Novo, caiu em si: "Ah, é o Periquito! Mas o Periquito virou poeta?!".
Armando marcou com ele um encontro dos três para fazer uma entrevista, mas o encontro não houve.
Voltemos ao começo, isto é, ao tempo em que eu sonhava tornar-me um craque do futebol como havia sido meu pai.
Se jamais me passou pela mente que Canhoteiro ia se tornar um craque de prestígio nacional, já naquelas peladas ele impressionava a todos com a habilidade como driblava e chutava a bola de borracha pequena.
Para espanto geral, saía driblando os garotos todos, mantendo a bola sob seu pé esquerdo (já que era canhoto, claro), batendo-a contra o chão até chegar ao gol.
Já Esmagado não era apenas meu companheiro de peladas. Com Maninho --mais conhecido como Espírito da Garagem da Bosta-- formávamos um trio de ladrõezinhos que surrupiavam copos nos botequins e os vendiam para um quitandeiro da Camboa.
Mas enquanto Maninho era um perna de pau no futebol e eu, quase isso, Esmagado tinha o tino do craque e por isso mesmo fez carreira no futebol. Não chegou à seleção brasileira, como Canhoteiro, mas chegou à seleção maranhense.
Eu não me atrevia a sequer tentar imitá-lo naquilo. Nem eu nem os demais garotos, já que aquela habilidade estava fora de nosso alcance.
É que as coisas são assim mesmo: poeta, jogador de futebol, ladrão e outros profissionais já nascem com seus respectivos talentos.
Ser poeta jamais me passara pela cabeça, mesmo porque, até então, mal ouvira falar em poesia. Já o futebol, pelo contrário, estava na família, tanto que Dodô, meu irmão mais velho, jogava num time juvenil com camisa do clube e chuteira.
Foi assim que consegui realizar meu sonho: entrei para o time juvenil do Sampaio Corrêa Futebol Clube e passei a jogar também com camisa de jogador de futebol.
Mas o sonho durou pouco porque numa partida contra o juvenil do Luso Brasileiro, ao receber um passe para chutar no gol, um garoto do time adversário me deu uma rasteira tão violenta que me ergueu do chão e me fez cair de bunda.
Foi um baque tão forte que não consegui me levantar. Carregaram-me para fora do campo e ali fiquei, gemendo de dor. Durante uma semana, mal podia andar. Nunca mais quis vestir a camisa do Sampaio Corrêa nem de qualquer outro clube.
Tornei-me apenas torcedor e, mais tarde, poeta, que não corre esse tipo de risco.
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