- Correio Braziliense
A crise fiscal não é fruto somente da ampliação dos gastos sociais em consequência da Constituição de 1988, como muitos afirmam
Um dos efeitos mais deletérios da crise ética são os seus efeitos sobre a vida banal. Nosso “capitalismo de laços”, na sua face mais abjeta, foi desnudado pela Operação Lava-Jato: um pacto corrupto entre a elite política e as grandes empreiteiras do país para saquear os cofres públicos. Mas o fenômeno se reproduz também em relação às políticas públicas capturadas por grandes interesses privados na saúde, na educação, na segurança pública e na mobilidade urbana — os setores dos quais depende o cotidiano dos cidadãos.
É nesse contexto que devemos examinar a aprovação da PEC do teto dos gastos sociais. A crise fiscal não é fruto somente da ampliação dos gastos sociais em consequência da Constituição de 1988, como muitos afirmam. Além dos escândalos investigados pela Lava-Jato, há que se examinar a qualidade desses gastos. Até que ponto se consomem mais recursos com a própria burocracia e com o superfaturamento de insumos e serviços, para favorecer grandes grupos privados, em detrimento do atendimento direto ao cidadão?
Ao contrário do que muitos afirmam, o teto dos gastos não significará a redução automática dos recursos da saúde e da educação, essa é uma narrativa falsa, pois a lei limitará os gastos em geral e imporá escolhas mais racionais, ou seja, uma disputa política no debate do Orçamento da União. A crise de financiamento do Estado de bem-estar social é mundial, em razão das aceleradas mudanças na estrutura produtiva e da globalização, e gera um grande desconforto social. No Brasil, porém, esse desconforto foi exacerbado pela recessão econômica e pela crise ética.
As políticas públicas foram capturadas pelos grandes interesses econômicos e a chamada vida banal foi ignorada pelo poder público, principalmente nas periferias das grandes cidades. Essa é a verdade mais dolorosa. A mais forte reação ao necessário ajuste fiscal parte das corporações, embora não se possa ignorar a insatisfação dos setores verdadeiramente prejudicados pela péssima qualidade dos serviços.
A oposição atribui ao presidente Temer a responsabilidade pela recessão, como se nada tivesse a ver, por exemplo, com o corte de R$ 69 bilhões no Orçamento de 2015, no governo Dilma Rousseff. Os maiores ajustes foram efetuados nos ministérios das Cidades (R$ 17,2 bilhões), da Saúde (R$ 1,7 bilhão), da Educação (R$ 9,4 bilhões) e dos Transportes (R$ 5,7 bilhões). Ou seja, o maior impacto foi na chamada vida banal.
O outro lado da moeda da “focalização” dos gastos sociais nos mais pobres, que se traduziu durante os governos Lula e Dilma na transferência direta de renda para aproximadamente 13 milhões de famílias, foi o sucateamento das políticas “universalistas”. Saúde, educação, transportes e segurança pública ficaram em segundo plano; a prioridade foi expandir o consumo via endividamento do Estado e das famílias. Resultado: a vida melhorou temporariamente dentro de casa, mas se degradou da porta para fora. As eleições municipais foram eloquentes quanto a isso.
Há que se rediscutir a relação entre o SUS e os estabelecimentos privados, a hegemonia do lobby rodoviário nas políticas de transportes, o impacto da bolha imobiliária na qualidade de vida das cidades e a expansão do ensino em função da acumulação privada e não da necessidade de formação de mão de obra. No andar de baixo, traficantes e milícias controlam a vida banal, enquanto as gangues de colarinho branco cuidam do andar de cima. Com a recessão e o desemprego, a pressão social sobre os serviços e a violência aumentaram. A crise nas administrações locais agrava a situação: são elas que arcam com a maior parte dessas demandas sociais.
Vandalismo
Em circunstâncias normais, haveria um grande debate na sociedade sobre a necessidade de reinventar o Estado brasileiro, ajustando-o à realidade da economia, e de trocar privilégios por igualdade de oportunidades, com oferta de serviços essenciais de qualidade. A recessão e a crise ética, porém, turvam a discussão. O conflito em torno da distribuição dos recursos públicos é mascarado e instrumentalizado. As cenas de vandalismo ocorridas ontem em Brasília são um bom exemplo. De um lado, o reflexo inequívoco da insatisfação social; de outro, a radicalização política que a crise ética favorece.
O mesmo fenômeno tende a se reproduzir no debate sobre a Previdência. A necessidade da reforma é inequívoca, para sobrevivência do sistema, o que exige acabar com os privilégios. Mas a mudança significa também lançar aos ombros dos segurados os custos de todos os desatinos e falcatruas, o que inevitavelmente gera revolta. Encontrar um ponto de equilíbrio não é uma tarefa fácil, ainda mais num cenário politicamente deteriorado como o atual, no qual a elite política está mais preocupada com a própria sobrevivência e impunidade.
O ajuste fiscal e a reforma da Previdência são agendas estruturantes. O presidente Temer dispõe ainda de base parlamentar para aprovar essas reformas, mas a pressão social tende a aumentar e, com ela, a instabilidade política. Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal, nesse cenário, manter o equilíbrio institucional. Para isso, porém, precisa começar a julgar os processos da Lava-Jato.
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