- O Globo
Ninguém manda em ninguém, mas também ninguém obedece. Essa parece ser uma boa definição da situação atual do país, quando ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) discutem entre si publicamente, o Legislativo entra em choque com o Judiciário, e o Judiciário tira da cartola interpretações variadas, de acordo com o juiz ou o ministro que tome a decisão.
Ou, numa linguagem mais chula muito usada em política, a situação está de vaca não reconhecer bezerro. A tal ponto que a presidente do STF, Cármen Lúcia, alegou estar ocupada para não atender a um telefonema do senador Renan Calheiros, como revelou Jorge Moreno em seu blog ontem, e cancelou o almoço de confraternização de fim de ano porque o ambiente não está para comemorações.
O último caso polêmico foi a liminar dada pelo ministro Luiz Fux mandando anular a tramitação do projeto das dez medidas de combate à corrupção, indo além do que queria o próprio impetrante.
O deputado Eduardo Bolsonaro pediu que o artigo 4, que prevê punições para membros do Judiciário em casos de “abuso de autoridade”, fosse retirado, sob a alegação de que feria atribuições de tribunais superiores, e que o sentido da proposta da iniciativa popular fora deturpado pela inclusão desse artigo.
Acontece que o projeto já fora enviado para o Senado, estando, portanto, em pleno processo legislativo, ainda não concluído. Além do mais, o ministro Fux alegou que as medidas de um projeto de iniciativa popular não podem ser assumidas por parlamentares, muito menos ele pode ser tratado como um projeto de lei normal, sujeito a emendas parlamentares.
Entramos, então, na discussão jurídica, que vai ser definida pelo plenário do STF depois do recesso, lá por fevereiro. Até lá, o processo legislativo está paralisado, e os presidentes da Câmara e do Senado estão recorrendo, alegando que o ministro Fux interferiu no processo antes de ele ser concluído.
Eles alegam que o STF já tem jurisprudência segundo a qual não pode ter interferência no processo legislativo enquanto a matéria está em apreciação. O assunto está sendo tratado com prudência pelos políticos, mas um ministro do próprio STF, Gilmar Mendes, saiu em defesa do Legislativo, dizendo que, nesse caso, seria melhor dar a chave do Congresso para o procurador Deltan Dallagnol, chefe da equipe da Lava-Jato.
Como tem sido habitual em Gilmar ultimamente, ele criticou diretamente um colega, dizendo que o STF vive “momentos estranhos” e que Fux fazia parte desse “surto decisório” que tomou conta da instituição. Ele se referia também, indiretamente, à liminar que Marco Aurélio deu tirando Renan da presidência do Senado, derrotada pelo plenário.
Fux alegou que a jurisprudência do STF prevê, em casos excepcionais, suspensão de proposta que não tramite no rito normal, mesmo que o processo ainda não tenha se encerrado. Mas a decisão dele parece exagerada, pois interfere diretamente no Legislativo.
Caso o projeto fosse aprovado no Senado do jeito que veio da Câmara, aí, sim, poderia ser impetrada uma ação no Supremo. A inclusão de punições a membros do Judiciário de fato distorce completamente o sentido do projeto de lei apresentado pelo Ministério Público de Curitiba com apoio de mais de dois milhões de assinaturas, e cabe aos órgãos específicos tratar desse assunto no STJ e no STF.
A interpretação de Fux tolhe a função do Congresso ao dizer que os projetos de iniciativa popular não podem ser alterados por propostas dos deputados e senadores. O que parece estar acontecendo é que Renan, especialmente depois que se sentiu fortalecido pela decisão do STF a seu favor, retomou o projeto de abuso de autoridade que havia prometido abandonar.
Essa mudança aconteceu depois que o procurador-geral da República apresentou nova denúncia contra ele. Há claramente uma disputa entre Renan e o Judiciário e o MP, e ambos os lados perdem a razão quando esquecem as questões maiores do país para se digladiarem em praça pública.
Os vários processos contra Renan dormiam nas gavetas do procurador-geral da República, não se sabe exatamente por que, e agora estão sendo retirados atabalhoadamente, muitas vezes com defeitos técnicos que o favorecem, como escrevi ontem.
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