quinta-feira, 15 de março de 2018

Maria Cristina Fernandes: No umbigo do Brasil

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- Valor Econômico

O individualismo tem 50 tons de desencanto

Valter, 65 anos, microempresário: "Se não acabar com a corrupção, não tem emprego."

Gabriel, 30 anos, economista: "Corrupção é problema de Estado grande. Não adianta tirar as moscas. Tem que tirar o presunto."

Jéssica, 23 anos, desempregada: "Tão corrupto quanto o político é o empresário que paga R$ 900 para uma pessoa limpar latrina. Exploração também é uma forma de corrupção."

Valter, Gabriel e Jéssica são egressos da classe C e moradores da periferia de São Paulo. No fim de fevereiro, reuniram-se numa sala na zona oeste da cidade com mais cinco pessoas de renda e origem semelhantes. Durante duas horas, discutiram problemas do país. Nas duas semanas seguintes, outros grupos se juntaram em outros cantos do país. O falatório de todos eles foi compilado pelo publicitário André Torreta no relatório "No umbigo do Brasil, o cenário eleitoral visto pelo brasileiro comum".

Pela estreiteza, a amostra não oferecem peso estatístico, mas os participantes, pela liderança e influência que têm nos lugares onde vivem, são escolhidos como antenas de suas comunidades. O que se fala nesses grupos é a tradução ao vivo e em cores de pesquisas de opinião com milhares de questionários.

No auge da recessão, quando não se imaginava que a coisa ainda podia piorar, o megainvestidor Luis Stuhlberger disse ao Valor que no fundo da crise ainda havia um alçapão. Os depoimentos colhidos nesses grupos mostram que também há um subsolo para a confiança da população.

Na última vez que reuniu grupos semelhantes, quatro meses atrás, Torreta concluíra que a classe C, origem de 80 milhões de brasileiros, não se identificava com as opções políticas postas à mesa porque não encontrava nelas empatia com sua sofrência.

Desta vez, foi adiante. A sofrência não será resolvida por governo algum, mas pelos próprios brasileiros, desde que disponham daquilo que não passa da obrigação de qualquer governante: educação, saúde, emprego e lisura no trato da coisa pública.

Em 2013 as pessoas saíram às ruas como nunca o haviam feito. O desemprego era o mais baixo da história, mas o fato parecia decorrer do mérito de cada um e de mais ninguém. E parecia pouco. Desta vez, o desemprego está nas alturas, mas as ruas estão vazias. A próxima ocupação, regulada pelo calendário eleitoral, será em outubro, mas os brasileiros não reconhecem nas eleições, como mostra a pesquisa CNI-Ibope, capacidade de renovar suas expectativas no país. Confiam mais em si mesmos desde que tenham, por exemplo, mais educação.

Os 50 tons de cinza do individualismo tupiniquim explicam, por exemplo, atitudes aferidas em pequena e larga escalas em relação à corrupção. O microempresário Valter é apenas um dos muitos brasileiros dispostos a votar até mesmo em um candidato com o qual não concorde desde que tenha confiança em sua honestidade.

A atitude parece movida pela aposta de que as pessoas são capazes de melhorar de vida se os políticos pararem de roubar. A descrença na distinção de rumos entre os candidatos não revela apenas o desencanto com a política. Mostra a deixa para uma pegada autoritária que extrapola a candidatura de Jair Bolsonaro. Oferece terreno fértil para um candidato capaz de conduzir com segurança o discurso deixa-que-eu-resolvo. De que forma, exatamente, poucos acham que adianta saber.

Torreta vê na intervenção militar no Rio a aposta na volta do populismo pela direita, mas a pegada autoritária não escolhe coloração. O presidente Michel Temer pode apenas ter sido o primeiro a enxergá-la sem dela tirar proveito, mas não está condenado a ser o único. A intervenção, saudada como uma medida "melhor do que nada", não foi capaz, nem mesmo, de fazer com que o presidente tivesse seu nome citado pelos participantes dos grupos. O presidente não existe, apenas "o governo". Não espanta que sua intenção de voto se aproxime do traço.

Quem já apostou no autoritarismo difuso e não mostrou a que veio terá dificuldades para mostrar que o fará a partir de agora. Um exemplo é João Doria. Nos dois grupos conduzidos em São Paulo, o prefeito da capital é, de longe, o político de pior imagem.

Foi capaz de despertar confiança até mesmo de jovens idealistas como Jéssica ("me enganou, só limpou rua"), ou mais pragmáticos, como Gabriel ("bom político, péssimo gestor"), a corretora de imóveis Kátia ("não tem coisa mais importante na cidade do que perseguir grafiteiro?"), a estudante Vanessa (" a gente não come cidade limpa") ou o desempregado Wellens ("Pra que mexer na merenda e no uniforme das escolas?"). Decepcionou a todos.

A imagem do prefeito é ainda pior do que a de Geraldo Alckmin, que ainda arranca ponderações positivas de Gabriel ("pelo menos não deixou o Estado quebrar como o Rio"), ou do segurança Ronaldo ("aqui pelo menos não tem tanta violência"). Mas o governador ainda está longe de ter uma marca para chamar de sua.

O mesmo Ronaldo não lembra de outro ocupante do Palácio dos Bandeirantes. E não é capaz de citar um legado fora da comparação com o descalabro da violência do Rio ("O hospital de Vila Nova Cachoeirinha é um açougue"). A assessora de eventos Lisley não se conforma que, depois de tanto tempo no cargo, o governador não tenha melhorado as escolas ("enquanto nossos filhos estão no bê-á-bá, nas escolas de elite já estão fazendo redação em inglês").

Alckmin é muito criticado em São Paulo e ignorado fora do Estado, mas as opções ao PSDB tampouco emplacam. Fernando Haddad é visto como um prefeito que só construiu ciclovia e perdeu a eleição porque descuidou da periferia. Ciro é ignorado. Quando aparece, é visto positivamente por ser incisivo mas só será escolhido por simpatizantes do PT se receber o aval do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Lula e Bolsonaro são os únicos que aparecem com cara definida, um encarna a justiça social, ainda que manchada pela corrupção, e o outro, a linha dura, ainda que simbolize um tiro no escuro. No questionário da Ipsos com 1,2 mil entrevistas a partir das quais o roteiro dos grupos foi conduzido, o ex-presidente é o único dos pré-candidatos a ter queda no índice de rejeição ao longo dos últimos anos. Ao vivo e em cores, as pessoas já se deram conta de que Lula pode ficar fora da disputa. Não sabem o que vem em seguida e talvez, por isso, olhem, cada vez mais, para seu umbigo.

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