sábado, 7 de setembro de 2019

Philip Stephens - Brexit enterra os conservadores

- Valor Econômico

O discurso político civilizado deu lugar à hostilidade sistemática. Normas e instituições democráticas essenciais, entre as quais o respeito por pontos de vista minoritários, estão sob ataque cerrado. Mentiras gratuitas se tornaram a prática ministerial dominante preferida

O fervor ideológico se transformou em intensa febre. O Brexit convulsionou a política britânica. O próprio tecido da democracia do país corre risco. O lugar da Escócia na União do Reino Unido foi posto em questão. Boris Johnson não ligou. O premiê e seu grupo de defensores do Brexit decretaram que o Reino Unido tem de sair da União Europeia (UE) a 31 de outubro. Nem um dia a mais. Todo o resto não tem importância.

Felizmente, a decisão do Parlamento foi outra. Nesta semana a fanfarronice vulgar da curta gestão de Johnson como premiê sofreu a primeira colisão com a realidade. Um político acostumado a mentir e a sair de saias-justas com trapaças foi fragorosamente derrotado na Câmara dos Comuns, a câmara baixa britânica. O Parlamento parece agora preparado para desarmar o prazo final de outubro ao barrar o caminho para um Brexit sem acordo. Além disso, tirou das mãos do premiê a determinação da data para uma inevitável eleição geral.

A reação de Johnson ficou à altura de sua personalidade. À maneira do menino de escola valentão descontrolado que não conseguiu o que queria, Johnson expulsou do partido 21 conservadores de centro que tinham ousado desafiá-lo [pela regra, o parlamentar expulso continua atuando, como independente, até o partido decidir readmiti-lo]. O pedido de exoneração do governo de seu irmão Jo Johnson - um político da ala boa do partido - não poderia ter sido afirmação mais forte de que esse foi um ato de rancor de que o premiê se arrependerá.

Na lista de ex-ministros defenestrados do partido estavam Kenneth Clarke, um dos políticos conservadores mais ilustres do pós-guerra. Nicholas Soames, o neto de Winston Churchill, foi outra vítima, ao lado de Philip Hammond, que até dois meses atrás foi o ministro das Finanças. São personalidades que há muito sustentam o discurso político digno, respeitável e essencialmente sincero que Johnson desconhece por completo.

Para além da vingança pessoal - os rebeldes agora se defrontam com a possibilidade de não poderem se candidatar pelo partido na próxima eleição -, o expurgo emitiu mais um recado. Não faz tanto tempo assim que Johnson considerou apropriado posar de One Nation Conservative (conservador democrata) de pensamento liberal. Agora ele lançou de vez ao mar todo o conservadorismo do grupo menos ortodoxo, mediano, de Edmund Burke. Em sua ansiedade por ganhar uma vantagem tática, na direita, sobre o Partido Brexit de Nigel Farage, Johnson disputará uma eleição como líder do partido do nacionalismo inglês.

A Escócia por pouco não foi lançada ao mar também. Ruth Davidson, que comandava os conservadores escoceses, era uma das lideranças mais eficientes do firmamento político britânico. Ela citou as pressões da vida familiar como o motivo principal de sua recente renúncia. Não é segredo, no entanto, que ela não aceitava o surrupiado populismo de direita vendido pelo premiê. Sua saída prenuncia um colapso do voto conservador na Escócia. Quanto mais Johnson ficar em Downing Street, a sede do Executivo britânico, maior é a certeza de que a Escócia apoiará a independência.

No estilo dos demagogos e dos xenófobos de todas as eras - e com algo maior que um aceno ao populismo do presidente Donald Trump -, o premiê quer imprimir à eleição geral o falso caráter de uma disputa entre o Parlamento e "o povo" que ele agora diz defender. Qualquer pessoa que considere que o Reino Unido não deve ser excluído da Europa em 31 de outubro é um colaborador. E, sim, os europeus são o inimigo.

O programa de Johnson é crivado de contradições e contrassensos. Ele se retrata como o paladino da soberania do Parlamento de Westminster. Só que ele passou as últimas semanas tentando amordaçar esse mesmo Parlamento. Ao ter fracassado na empreitada, ele agora reivindica uma autoridade mais elevada como representante da "vontade do povo". É aí que mora o assalto autoritário às instituições democráticas.

A alegada tática de negociação de Johnson com a UE lembra briguinha de criança. Ele diz que Bruxelas vai reabrir as disposições pactuadas com o governo de Theresa May apenas se ele convencer seus membros de que ele está pronto para empurrar o Reino Unido da beira do despenhadeiro de um Brexit sem acordo. O recado a Angela Merkel, da Alemanha, e a Emmanuel Macron, da França, é simples: reescrevam o acordo, caso contrário vamos nos destruir. Loucura.

O premiê leu o manual do demagogo: é só repetir a mentira com a frequência suficiente que muitas pessoas acreditarão nela - mais ainda quando ela é coalhada de xenofobia cuidadosamente bem-direcionada. Durante a década de 1960, os republicanos de direita dos Estados Unidos embarcaram no que era chamado de "estratégia sulista" - um apelo a eleitores da classe operária branca que estavam desiludidos com o esquerdismo voltado aos direitos civis do Partido Democrata.

Johnson tem uma "estratégia nortista". Ao moldar o Brexit como uma luta contra os estrangeiros e a imigração, ele espera vencer uma eleição conquistando o apoio de eleitores antieuropeus da classe operária branca em áreas tradicionalmente trabalhistas. Estamos diante de uma campanha que promete fazer até Trump corar.

Tamanha tem sido a confusão desde o plebiscito de 2016 que é fácil esquecer simplesmente o quanto o Reino Unido já caiu. A confiança na política veio abaixo. O discurso político civilizado deu lugar à hostilidade sistemática. As normas e instituições essenciais da democracia - entre as quais a tolerância, o respeito por pontos de vista minoritários, os papéis imparciais do Judiciário e do funcionalismo público - estão sob ataque cerrado. Mentiras gratuitas se tornaram a prática ministerial dominante preferida.

Uma eleição geral não vai resolver essa situação. A razão se apartou da discussão europeia. Muito provavelmente uma eleição vai gerar, rapidamente, mais um impasse político. Os requisitos mínimos para um entendimento sustentável são a retirada de Johnson e a realização de outro plebiscito. Em algum momento, é claro, a UE de 27 países pode perder toda a paciência e será difícil recriminá-la por isso. Johnson prometeu no passado "reassumir o controle". Agora ele perdeu o controle. (Tradução de Rachel Warszawski)

*Philip Stephens é o principal comentarista político do Financial Times.

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