quarta-feira, 23 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

O contrato nebuloso da Covaxin

O Globo

São conhecidas as declarações do presidente Jair Bolsonaro questionando a eficácia das vacinas. Também não é segredo a falta de disposição de seu governo para comprá-las, que levou o país a uma escassez crônica de doses num momento de escalada da pandemia. Por isso mesmo, chama a atenção o empenho súbito de Bolsonaro para trazer a indiana Covaxin, produzida pelo Laboratório Bharat Biotech e intermediada pela Precisa Medicamentos. É a mais cara entre todas as vacinas contratadas (custa R$ 80,70 a dose, o quádruplo da Oxford/AstraZeneca, que sai por R$ 19,87).

Impressiona a diferença de tratamento em relação aos imunizantes. Como mostrou o Jornal Nacional, o governo brasileiro levou 330 dias para fechar o contrato com a Pfizer e apenas 97 para contratar 20 milhões de doses da Covaxin, por R$ 1,6 bilhão. Ao contrário dos outros casos, o negócio não foi feito diretamente com o laboratório, mas com um intermediário, a Precisa. Bolsonaro se empenhou pessoalmente para fechar o negócio, enviando carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi.

São intrigantes as questões que persistem sobre o preço. Reportagem do Estado de S.Paulo mostrou que o governo comprou a Covaxin por valor 1.000% acima do estimado pelo laboratório em agosto de 2020 (os R$ 80,70 corresponderam a US$ 15, ante US$ 1,34 pedido na ocasião). Não é apenas o custo que levanta suspeitas. Um funcionário do Departamento de Logística do Ministério da Saúde relatou ao Ministério Público Federal pressões atípicas no processo da Covaxin.

É evidente que a compra de vacinas, fundamental para controlar a pandemia, não está imune a pressões. A farmacêutica União Química, que tem acordo com o Instituto Gamaleya para produzir no Brasil a russa Sputnik V, conta com forte lobby no Congresso. A despeito disso, a compra da vacina pelo Ministério da Saúde (10 milhões de doses) está travada porque os desenvolvedores ainda não conseguiram fornecer a documentação exigida pela Anvisa. Recentemente, a agência autorizou a compra emergencial pelos estados, mas para apenas 1% da população.

Depois de um ano e quatro meses, percebe-se que a pandemia abriu as portas à corrupção. O grande volume de recursos e a dispensa de licitação em virtude da urgência indiscutível das ações criaram condições favoráveis a malfeitos. Não são poucos os contratos para comprar respiradores ou construir hospitais de campanha com suspeitas de sobrepreço ou desvio de verbas. Vários estão sob investigação da Polícia Federal, do Ministério Público e da CPI da Covid. No Rio, denúncias de corrupção na pandemia levaram ao impeachment do ex-governador Wilson Witzel.

Ninguém tem dúvida de que o Brasil precisa de vacinas. Mas a urgência não pode servir de pretexto para contratos nebulosos como o da Covaxin. Não é razoável que o Brasil pague pela vacina indiana um valor maior que o de todas as outras contratadas. Dizer que os recursos não foram ainda desembolsados não atenua a gravidade da suspeita. Faz bem o MPF ao pedir apuração na esfera criminal. É essencial que os caminhos labirínticos dessa negociação sejam esclarecidos. A CPI e o Ministério Público terão importante papel na investigação. Qualquer passo em falso nessa trajetória carrega o peso de mais de 500 mil vidas perdidas.

O que o Senado precisa aperfeiçoar na Lei de Improbidade Administrativa

O Globo

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), afirmou que é preciso debater “com calma” a nova Lei de Improbidade Administrativa, recém-aprovada em regime de urgência na Câmara. O clima no Senado é distinto daquele que levou, entre os deputados, à votação avassaladora em favor de mudanças na legislação, por 408 votos a 67.

Vários senadores acreditam, não sem razão, que a legislação brasileira é leniente demais com crimes cometidos por políticos e consideram que a versão aprovada na Câmara contribui para torná-la ainda mais permissiva. É certo, por isso, que o texto enfrentaria percalços no Senado, daí a cautela de Pacheco. Não se trata, contudo, de uma notícia necessariamente ruim.

É mesmo preciso que o país aperfeiçoe a legislação que lida com desvios, enriquecimento ilícito ou recebimento de vantagens indevidas por parte de agentes públicos. A lei atual tem sido usada de modo abusivo para punir meros erros administrativos. Funciona como um repelente que afugenta bons gestores de postos no governo onde a competência deles poderia ser fundamental. Também inibe práticas inovadoras e a agilidade nas decisões, já que qualquer equívoco poderá depois vir a ser julgado improbidade nos tribunais. A lentidão de decisões na atual crise sanitária mostrou que isso tem de mudar.

Mas o texto aprovado na Câmara, embora torne o serviço público menos arriscado para aqueles que temem ser processados apenas por cometer erros, peca por exageros na direção oposta, que o Senado tem o dever de consertar. O principal diz respeito à extensão das penas pelos crimes cometidos. Os deputados agravaram as penas máximas, como a suspensão de direitos políticos. Esqueceram-se apenas de estabelecer penas mínimas — falha grosseira, já que são elas o maior fator dissuasivo contra crimes.

Os senadores também precisam definir com mais precisão certas mudanças que, embora necessárias, podem abrir brechas para a impunidade. É o caso do prazo de prescrição dos crimes, estabelecido como oito anos a partir da data da infração. Ou dos 180 dias concedidos aos inquéritos que apuram os desvios. Ambos os limites abrem flancos que bons advogados saberiam aproveitar para seus clientes ficarem impunes.

Mesmo que crie dificuldades para as autoridades que investigam crimes, é correta a principal mudança na lei, a exigência de comprovação de dolo, para que o gestor não seja punido apenas por decisões que deram errado. A legislação brasileira dispõe de vários outros instrumentos para combater os corruptos, como a Lei Anticorrupção ou a Lei das Organizações Criminosas. O mais difícil na luta contra a corrupção, nestes últimos tempos, não tem sido a falta de lei. Tem sido a leniência de juízes, em particular da ala garantista do Supremo Tribunal Federal, que têm se recusado a aplicá-las, mesmo diante de evidências eloquentes.

O presidente nervoso

O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro mais uma vez agrediu um jornalista que estava no exercício de sua profissão. Bolsonaro estava em um evento militar em Guaratinguetá (SP) quando foi questionado por uma repórter de uma afiliada da TV Globo sobre o fato de ter sido multado em São Paulo por não ter usado máscara numa manifestação. 

Era uma pergunta pertinente, considerando-se o fato de que o presidente é o chefe de Estado e, como tal, deveria ser o primeiro a dar o exemplo, adotando a proteção facial, comprovadamente eficiente para reduzir o risco de contaminação, num país que poucos dias antes atingira a terrível marca de 500 mil mortos pela pandemia de covid-19. A pergunta enfureceu Bolsonaro.

“Olha, eu chego como eu quiser, onde eu quiser, está certo? Eu cuido da minha vida. Se você não quiser usar a máscara, você não usa”, disse Bolsonaro, descontrolado. O presidente, aos gritos, mandou a jornalista calar a boca, chamou-a de “canalha” e disse que ela estava fazendo um “serviço porco”.

Bolsonaro já demonstrou em diversas ocasiões seu profundo desapreço pela imprensa em geral, com exceção dos veículos bolsonaristas que o adulam. A um jornalista que o questionou, em agosto de 2020, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, o presidente disse que sua “vontade” era “encher tua boca de porrada”. 

A nova demonstração de irascibilidade de Bolsonaro talvez se explique pelo contexto: além da terrível marca de meio milhão de mortos, há o crescente cerco da CPI da Pandemia, há a novidade das manifestações de rua contra o governo, cuja afluência tem sido cada vez maior, e há uma queda significativa de sua popularidade – que deriva não somente da administração irresponsável da crise, mas da alta da inflação e do desemprego. A pergunta sobre a máscara, que o lembra de suas responsabilidades como governante, teria sido a gota d’água que fez transbordar o nervosismo de Bolsonaro com um cenário muito adverso.

Mas é bom que o presidente vá tomando chá de camomila, porque as perguntas incômodas apenas começaram. Bolsonaro terá que explicar, por exemplo, por que seu governo comprou a vacina indiana Covaxin por um preço 1.000% superior ao que o fabricante anunciava seis meses antes, conforme revelou o Estado.

Segundo a reportagem, o laboratório indiano Bharat Biotech ofereceu seu imunizante por US$ 1,34 a dose, conforme telegrama secreto da Embaixada do Brasil em Nova Délhi. Em dezembro, outro telegrama dizia que a vacina custaria “menos do que uma garrafa de água”. Ao fazer a aquisição do imunizante, por ordem de Bolsonaro, o Ministério da Saúde aceitou pagar US$ 15 por unidade.

Ao contrário do que foi feito na negociação de outros imunizantes, a importação da Covaxin teve uma empresa intermediária, a Precisa Medicamentos, acusada de fraude com testes de covid e que tem como sócia uma empresa que é alvo de processo por não entregar remédios comprados pelo Ministério da Saúde. Por óbvio, a CPI da Pandemia quer saber por que, no caso da Covaxin, o governo recorreu a um intermediário – e um tão cheio de pendências judiciais.

Ademais, chamam a atenção a celeridade do governo para fechar negócio (foram 3 meses de negociação, contra 11 no caso da Pfizer), o alto preço pago (muito acima do inicialmente anunciado e bem superior ao da Pfizer, que vendeu por US$ 10 a dose) e o fato de que a Covaxin foi adquirida sem ter passado por todas as fases de testes e sem ter aval da Anvisa – condições que Bolsonaro havia imposto para comprar “qualquer vacina”. Em depoimento em poder da CPI, um servidor do Ministério da Saúde revelou ter havido “pressões anormais” para a compra da Covaxin.

É um escândalo, que se junta com destaque à extensa lista de delinquências do governo na gestão da pandemia e em outras searas. Bolsonaro pode continuar tentando intimidar jornalistas que se atrevem a lhe fazer perguntas, mas em algum momento, de um jeito ou de outro, terá que responder, mais do que às questões que lhe fazem, por seus atos.

Vacina é proteção coletiva

O Estado de S. Paulo

O Brasil ainda está distante de atingir o patamar de cidadãos vacinados que permita frear a disseminação comunitária do coronavírus e, consequentemente, pôr fim ao flagelo da pandemia. Epidemiologistas consideram que isto só ocorrerá quando cerca de 70% dos brasileiros estiverem totalmente imunizados, ou seja, tenham recebido as duas doses da vacina (ou uma dose, no caso da vacina da Janssen). Passados cinco meses do início da vacinação no País, no entanto, apenas 30,43% da população brasileira havia recebido a primeira dose até o dia 22 passado. O porcentual de pessoas que receberam as duas doses é ainda menor – 11,52%, de acordo com o consórcio de veículos de imprensa que compila dados das Secretarias Estaduais da Saúde.

Diante deste quadro, é impressionante – além de muito perigoso – que ainda haja quem simplesmente se recuse a tomar uma vacina quando chega sua vez porque o fabricante do imunizante à disposição no momento não é o de sua predileção, seja lá por que razões. Tal comportamento revela uma enorme irresponsabilidade, tanto do ponto de vista individual como coletivo.

Todas as vacinas que estão sendo aplicadas no Brasil são seguras e eficazes contra a covid-19, independentemente de sua origem. As quatro disponíveis – Coronavac, Oxford/AstraZeneca, Pfizer e Janssen – foram aprovadas para uso pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por agências reguladoras internacionais, todas estas instituições de reputação inquestionável. Portanto, ao deixar de tomar uma delas por questão de preferência pessoal, o cidadão põe em risco a sua própria saúde e, o que é pior, a da coletividade, optando deliberadamente por manter-se como vetor de disseminação da doença. A vacinação contra doenças virais, nunca é demais reforçar, é, antes de tudo, uma ação de proteção coletiva.

Todas as vacinas já citadas, em que pesem seus diferentes porcentuais de eficácia geral, oferecem ampla proteção contra casos graves de covid-19, o que praticamente elimina o risco de internações e mortes em decorrência da doença no caso de contágio. Logo, quanto mais pessoas forem vacinadas, menor será a pressão sobre os sistemas de saúde público e privado, o que salva vidas. É elementar.

Este comportamento egoísta de muitos cidadãos é inédito na bela história do Programa Nacional de Imunizações (PNI), um caso de sucesso que é reconhecido no mundo inteiro. Ele decorre, evidentemente, do criminoso ataque perpetrado pelo presidente Jair Bolsonaro às vacinas em geral e à Coronavac, em particular, por razões estritamente político-ideológicas, não científicas.

Até a pandemia de covid-19, nunca os brasileiros haviam se ocupado de questionar a origem das vacinas que recebiam contra as mais diferentes doenças. A alta adesão às campanhas de vacinação é uma marca nacional. Hoje, há quem escolha que vacina quer receber contra a covid-19, no melhor dos cenários. No pior, nem sequer querem ser vacinados. Grassa no País uma perniciosa campanha de desinformação da população a respeito dos imunizantes, cujo propagador de mentiras é nada menos do que a Presidência da República.

O País ultrapassou a terrível marca das 500 mil mortes decorrentes da covid-19. Isto deveria bastar para comover a Nação e levar todos os cidadãos aptos a serem vacinados aos postos de saúde. Só o avanço da vacinação, ao lado de medidas de proteção individual, como o uso de máscaras, a higienização das mãos e o distanciamento social, será capaz de interromper a catástrofe.

Recusar uma das vacinas, por qualquer que seja o motivo, é, sobretudo, um desrespeito à memória de mais de meio milhão de nossos concidadãos aos quais não foi dada a chance de receber a proteção. Do governo federal não se pode esperar uma campanha de comunicação séria estimulando a população a acorrer aos postos de saúde, não enquanto Bolsonaro for presidente. Resta à imprensa, à chamada comunidade científica e, mais importante, a cada cidadão reforçar em seus círculos de influência a importância da vacinação como única forma de salvar vidas em um país já por demais enlutado.

Uma paródia de privatização

O Estado de S. Paulo

Mais que uma vergonhosa coleção de jabutis, espertezas incluídas no texto por senadores e deputados, a Medida Provisória (MP) de privatização da Eletrobrás, a maior empresa de energia elétrica da América Latina, virou uma aberração. Senadores enxertaram na proposta enviada pelo governo 28 emendas, com vários jabutis, dispositivos sem relação direta com o assunto apresentado ao Legislativo. Reexaminados na Câmara, os acréscimos foram parcialmente eliminados pelo relator, deputado Elmar Nascimento (DEM-BA). Mas o texto afinal aprovado continuou aberrante, muito diferente do objetivo central, uma cautelosa transferência de controle para o setor privado, e acabou invadindo a área do planejamento energético, onde a iniciativa normalmente pertence ao Executivo.

Transferir o controle acionário por meio da capitalização era o propósito central da MP 1.031. Sem participar da subscrição das novas ações, a União deveria ter sua cota reduzida de 60% para 45% do capital. Teria, no entanto, uma golden share, com possibilidade de veto em relação a certas iniciativas, manteria o controle da Eletronuclear e da Itaipu Binacional e preservaria alguns poderes, como o de prorrogar concessões de um conjunto de hidrelétricas. Mas parlamentares tinham planos próprios para a transformação do setor elétrico e decidiram misturar seus interesses com o projeto técnico do Executivo.

Seria impróprio comparar o resultado com um ornitorrinco. O bichinho australiano, um mamífero ovíparo, com bico semelhante ao do pato, rabo como o do castor, patas com membranas e esporões com veneno letal para pequenos animais, consegue mover-se, reproduzir-se e ocupar seu espaço. Ao contrário desse e de outros bichos, a versão final da MP da Eletrobrás é um conjunto desarticulado, produto da justaposição de muitos interesses particulares.

Nada, além desses interesses parciais, pode explicar a presença, naquele texto, da prorrogação por 20 anos dos contratos de usinas construídas por meio do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), da contratação por 15 anos de usinas termoelétricas movidas a gás natural, da reserva de mercado para contratação de pequenas hidrelétricas e da obrigação de cuidar da navegabilidade da hidrovia Tietê-Paraná.

O caso das térmicas movidas a gás é especialmente interessante. Essas usinas deverão estar instaladas principalmente em áreas desprovidas de infraestrutura de transporte de gás natural. Será preciso, portanto, investir numa infraestrutura desse tipo.

Tem-se discutido se os jabutis prejudicarão o funcionamento do mercado e se aumentarão os custos para os consumidores. A discussão é importante, mas só contempla um aspecto muito restrito das emendas. A discussão, desde o início, deveria ter-se voltado para uma mais importante do ponto de vista da gestão: as obrigações incluídas na MP são mesmo necessárias ao sistema energético, razoáveis quanto ao custo e de fato úteis ao sistema produtivo e aos consumidores?

O mexidão improvisado inclui a possível isenção de licenças do Ibama e da Funai para a construção do Linhão do Tucuruí, para ligar Roraima ao sistema elétrico nacional, e a criação no prazo de um ano de um plano de recuperação de reservatórios das usinas hidrelétricas. Parlamentares simplesmente adicionaram ao texto dispositivos ditados por interesses particulares ou regionais, como se a MP da privatização da Eletrobrás fosse um trem de carga com espaço à disposição de quem quisesse ocupá-lo.

Mais do que qualquer detalhe, no entanto, aberrante é o conjunto formado pelo texto original e pelas emendas. Esse conjunto é uma caricatura grotesca de planejamento setorial. A saudável iniciativa de privatização da Eletrobrás por meio de capitalização converteu-se numa paródia sinistra do planejamento, atividade típica do Executivo, mas quase ignorada pelo presidente da República e por sua equipe. Sem partido, e dependente do apoio do Centrão, o Executivo foi incapaz de impedir a transformação da MP da Eletrobrás numa farra.

A desigualdade e o IR

Folha de S. Paulo

Busca por carga total mais justa deveria balizar a reforma do Imposto de Renda

Os últimos anos foram de más notícias para o enfrentamento da infame desigualdade social brasileira. Na década passada, caiu por terra a convicção de que a distância entre ricos e pobres estava em retração; agora, teme-se que ela cresça com os impactos da pandemia.

Dados que apontavam melhora a partir dos anos 2000, com base nos rendimentos do mercado de trabalho, foram posteriormente contestados por estudos mais amplos, amparados nas estatísticas do Imposto de Renda, que contemplavam também ganhos de capital como os oriundos de lucros, aluguéis e aplicações financeiras.

A Covid-19 agrava um quadro já dramático na América Latina, como aponta relatório recém-publicado pela ONU. Em particular, porque as medidas imperativas de restrição às atividades prejudicam mais os estudantes e trabalhadores dos estratos mais carentes.

Fenômeno complexo, a desigualdade se apresenta de múltiplas maneiras. Há discrepâncias salariais entre homens e mulheres; há discriminação de pessoas LGBT no mercado; negros têm muito menos acesso que os brancos às benesses do desenvolvimento, como mostra o índice de equilíbrio racial (Ifer) lançado por esta Folha.

Destaque no grupo de países mais desiguais do mundo, o Brasil tomou providências para lidar com essa chaga —a mais importante delas foi instituir um aparato de seguridade de dimensões raras no mundo emergente.

O vultoso gasto social tem sua eficácia comprometida, porém, quando o mesmo poder público falha em prover educação de qualidade e, mais ainda, insiste em conceder privilégios a setores influentes da burocracia e do empresariado.

O Estado brasileiro realimenta a desigualdade, ainda, ao tributar de modo iníquo, com muito mais ênfase na taxação do consumo, o que onera em excesso os mais pobres, que na da renda.

O tema volta à pauta com a proposta de reforma do IR mais uma vez ensaiada pelo governo Jair Bolsonaro —e mais uma vez motivo de resistências antecipadas e pressões de natureza política.

Há muito a fazer para tornar a carga de impostos mais progressiva, sem elevá-la além de seu patamar já exagerado. Rever subsídios, tributar dividendos (com ajuste no gravame dos lucros) e até majorar alíquotas sobre rendimentos altos se mostram caminhos viáveis.

Infelizmente, o debate corre o risco de ser contaminado pelo imediatismo eleitoral e pela promessa demagógica de Bolsonaro de ampliar a faixa de isenção. Mesmo forças à esquerda, aliás, relutam em abraçar propostas mais ambiciosas para o IR, dados os interesses dos sindicatos de categorias mais bem situadas na pirâmide social.

França incerta

Folha de S. Paulo

Em pleito com enorme abstenção, direita radical e Macron têm fraco desempenho

O primeiro turno das eleições regionais da França, realizado no domingo, trouxe más notícias tanto para o presidente do país, Emmanuel Macron, como para sua principal contendora, Marine Le Pen.

Favorito em 6 das 13 regiões em disputa, o ultradireitista Reunião Nacional, partido comandado por Le Pen, teve um saldo bastante aquém do previsto. Conquistou o primeiro lugar em apenas uma localidade, e ainda assim por margem estreita, granjeando, no cômputo geral, 19% dos votos.

Trata-se de um resultado bem mais modesto que o da disputa regional anterior, ocorrida no final de 2015, quando a agremiação foi a mais votada no primeiro turno, com quase 28% dos sufrágios —embora, no segundo, tenha perdido para as alianças contrárias.

O revés representa um banho de água fria nas pretensões de Le Pen, derrotada por Macron em 2017, que pretendia transformar a votação numa catapulta para a corrida presidencial do ano que vem. Evidencia também os limites da estratégia de dar nova cara à sigla.

Nos últimos anos, Le Pen vem tentado suavizar a imagem do Reunião Nacional, marcada pelo discurso xenofóbico e pela defesa de políticas anti-imigração, com o objetivo de conquistar novos eleitores e, assim, romper as barreiras que até hoje impediram a ultradireita de alçar voos maiores no país.

As coisas tampouco transcorreram bem para o atual mandatário. O seu República em Marcha amealhou pouco mais de 11% dos votos, e nenhum dos ministros que concorreram obteve votos suficientes para chegar ao segundo turno.

Ainda que Macron lidere as pesquisas para a próxima eleição, o malogro regional acende o sinal amarelo num governo que principiou cercado de enormes expectativas, mas cujo capital político foi se esvaindo ao longo de seguidas crises —dos “coletes amarelos” aos protestos contra a reforma previdenciária e a nova lei de segurança.

Numa votação em que nada menos de 66% dos franceses se ausentaram, os vitoriosos acabaram sendo os partidos tradicionais, que haviam perdido terreno nos últimos anos. Os Republicanos, de centro-direita, obtiveram 27% dos votos, e os socialistas, quase 18%.

Assim, a dez meses do pleito presidencial, o panorama político que se delineia na França é profundamente incerto, com os principais postulantes enfraquecidos, enquanto as forças que reinaram no passado ganham novo impulso.

Mercado de trabalho fraco aprofunda a desigualdade

Valor Econômico

No ano, cairão o número de pessoas com carteira assinada e a renda real

Indicadores sociais recentemente divulgados mostram novas facetas dos efeitos negativos da covid-19 e das graves falhas do governo no enfrentamento da pandemia. Em comum, eles têm a deterioração do mercado de trabalho, que resulta no aumento do desemprego, do desalento e da desigualdade, na piora da perspectiva de vida e na queda de renda, agravada agora pela elevação da inflação.

Um desses indicadores é o índice de miséria, que atingiu em maio o maior nível em nove anos, pico da série estimada pelo economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale. Calculado pela soma da taxa de inflação com a de desemprego, o indicador ficou em 23,4 pontos percentuais em maio, que pode superado neste mês. O cálculo leva em consideração que a inflação em 12 meses, medida pelo IPCA, chegou a 8,1% no mês passado, e o desemprego estimado atingiu 15,3%. O dado mais recente de desemprego divulgado pelo IBGE é de março, quando estava em 14,7%.

Outra pesquisa, esta feita pelo Centro de Estudos FGV Social, constatou que a renda média individual do trabalho despencou 11,3% do primeiro trimestre de 2020 para R$ 995, menos de um salário-mínimo, o menor nível da série histórica. O cálculo é feito pela média móvel de quatro trimestres. Sem levar em conta a média móvel, a queda da renda individual do trabalho foi 10,89% no primeiro trimestre de 2021. Entre os mais pobres, a redução foi ainda maior, de 20,81%.

Desse modo, a recuperação do PIB registrada no início deste ano não ocorreu de modo uniforme, mas ficou concentrada em um segmento limitado, ampliando a desigualdade. O levantamento do Centro de Estudos FGV Social constatou que o impacto da pandemia no mercado de trabalho levou a nível recorde a desigualdade da renda, medida pelo índice de Gini. No primeiro trimestre de 2020, o índice estava em 0,642. Já no primeiro trimestre deste ano, o indicador alcançou a marca de 0,674, a maior da série analisada. Quanto mais perto de 1 estiver o índice de Gini, maior é a desigualdade.

Em desdobramento da pesquisa, o Centro de Estudos FGV Social registrou as repercussões psicológicas, como maior insatisfação com a vida e aumento dos sentimentos de raiva, estresse, preocupação e tristeza, com maior frequência do que em outros países igualmente atingidos pela pandemia, em comparação feita com dados do Gallup World Poll.

O principal determinante desses resultados é o mercado de trabalho. Desde a recessão de 2015 e 2016, o mercado de trabalho vem se deteriorando. A pandemia agravou o quadro, especialmente com a dizimação da ocupação informal e do emprego na área de serviços. A situação foi pior para os trabalhadores menos instruídos, que geralmente atuam nessas áreas.

Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) constatou que o número de horas trabalhadas pelos profissionais com ensino fundamental incompleto despencou 12,9% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo trimestre do ano anterior, enquanto as pessoas com ensino superior completo trabalharam 11,7% mais. O levantamento mostra perda no número de horas trabalhadas também para quem tinha o ensino fundamental completo (6%) e ensino médio completo (4,1%).

A reversão desse quadro passa pela recuperação do mercado de trabalho, o que deve demorar. Espera-se que o desemprego até aumente à medida que o avanço da vacinação anime a busca por emprego pelos que conseguiram se isolar. Além disso, a recuperação que começa a dar sinais na economia é desigual e ainda não atinge setores que empregam mais mão de obra, inclusive não especializada, como o de serviços, construção civil e transporte.

A própria Secretaria de Política Econômica, do Ministério da Economia, projeta para este ano queda de 0,45% na população ocupada com carteira assinada e de 2,4% na renda real dos trabalhadores. Apesar disso, o governo parece despreparado ou sem disposição para lidar com esses problemas. Foi o que demonstrou ao demorar tanto para definir a extensão do auxílio emergencial no início do ano, ao acreditar que com a mudança do calendário a pandemia iria embora; e, agora, ao hesitar em reformular o Bolsa Família. Negligenciando o reforço das redes de proteção social, o governo é responsável pela volta do país ao mapa da fome, depois de ter ficado 17 anos fora dele.

 

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