Reformismo de Arthur Lira é baseado em modelo inflacionado de propostas e com pouco tempo para debate
Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Em muitos momentos da história, a elite
política brasileira optou por ideias prontas que seriam capazes de dar conta de
vários desafios do país. Quase sempre esse processo era pouco conversado com a
sociedade e, geralmente, escondia agendas ocultas, enunciando apenas o “lado
bom” das propostas. O presidente da Câmara, Arthur Lira, comanda hoje um debate
sobre reforma política que segue esta linha de “soluções em busca de
problemas”, na qual não há um diagnóstico claro sobre as causas do fenômeno e
sobre a efetividade das mudanças. O que importa para o reformismo do Centrão é
mudar para permanecer ainda mais forte no poder.
A lista de alterações no ordenamento do
sistema político proposto por Lira e seu exército de reformistas do Centrão é
realmente impressionante. Para ficar nas mais importantes, mudanças no modelo
eleitoral, na forma de prestação de contas dos partidos, na atuação do Tribunal
Superior Eleitoral, voto impresso e, agora, a troca do presidencialismo pelo
semipresidencialismo. É verdade que, neste cipoal propositalmente confuso de
modificações, surgem até medidas baseadas em dados objetivos e que seguem uma
lógica correta, como as vinculadas à participação feminina nas eleições. Mas
não adianta olhar para cada uma das partes sem entender a concepção mais ampla
deste processo.
O modelo reformista de Lira e companhia baseia-se em cinco características. Primeira: fazer muitas reformas e rapidamente. Segunda: realizá-las sem o debate adequado com a sociedade e especialistas. Terceira: ter as soluções sem que haja um diagnóstico prévio que de fato embase as propostas de mudança. Quarto: ter o cuidado de fazer mudanças que reforcem o poder dos reformadores do Centrão e seus aliados ocasionais, mas gerando a impressão de que estão resolvendo problemas urgentes do sistema político. E, por fim, toda essa correria por diversas reformas, e não só no campo político-institucional, é uma estratégia do presidente da Câmara para se fortalecer no jogo com a Presidência da República e com certos setores sociais. No fundo, Lira propõe várias coisas ao mesmo tempo para não expor sua agenda oculta.
Todas estas características têm conexão
entre si. Ao fazer reformas mais céleres, o reformismo do Centrão reduz o tempo
de debate, a transparência das decisões e, sobretudo, alija a sociedade de uma
participação mais efetiva (e não decorativa) neste processo de mudança. A
rapidez e a grande quantidade de alterações legais também diminuem a
possibilidade de se fazer um diagnóstico mais preciso da realidade, que defina
claramente a relação entre os problemas e os remédios institucionais propostos.
Mas como sempre há alguma medida correta
num pacote tão grande de modificações, além de haver um charme em se propor
algo para transformar o sistema representativo, muitos aceitam reformas com
pouco embasamento analítico e aceitam mudar tudo de uma vez à espera de um novo
tempo. Só que não. O resultado maior de todo o reformismo de Lira é garantir a
força de seu grupo, inclusive frente àqueles que recentemente o chamavam de
“velha política” e hoje não vivem sem um Centrão para chamar de seu.
Uma mistura explosiva contra a democracia
brasileira alimenta esse reformismo atual. Sua agenda não dialoga nem com a
última eleição nem com os cidadãos brasileiros que estão há um ano e meio no
perrengue de uma pandemia que causou muitas mortes e empobrecimento. Afinal,
quem na campanha eleitoral propôs mexer em tantas regras com os remédios que
estão sendo propostos? Alguém foi eleito em 2018 em nome da entusiasmante
reforma que estabelece o “distritão” como sistema de votação? Quantos eleitores
ou grupos sociais foram ouvidos pela Câmara para permitir uma flexibilização da
prestação de contas dos partidos? O povo foi avisado que elegerá um presidente
que poderá ser mais frágil institucionalmente se for aprovado às pressas o
semipresidencialismo, mesmo depois de o eleitorado ter aprovado em massa o
presidencialismo no plebiscito de 1993?
Os modernizadores do Centrão poderão dizer
que desde as jornadas de junho de 2013 os eleitores clamam por uma ampla
reforma do sistema político. Sim, há descontentamento social amplo contra as
instituições políticas. Entretanto, tal sentimento é muito difuso e baseado em
perspectivas heterogêneas sobre o que deve ser feito. Por isso, é necessário um
diagnóstico organizado pelos políticos eleitos, em diálogo com especialistas,
para ser apresentado e debatido pela sociedade.
O que está ocorrendo é o inverso. Basta
pensar na qualidade das soluções propostas. De que estudos tiraram a ideia de
que o “distritão” é o sistema eleitoral mais adequado para resolver as mazelas
da representação no Brasil? Qual é a pesquisa sobre o desempenho das urnas
eletrônicas que embasa a proposta do voto impresso defendido por bolsonaristas
e seus novos aliados da “velha política”? O deputado Arthur Lira conhece as
diferenças mais gerais entre os sistemas políticos da França e de Portugal? De
qual deles viria a fórmula semipresidencial para o Brasil? Como seria o
semipresidencialismo numa federação como a brasileira, dado que os dois
exemplares desse padrão no mundo são Estados unitários?
Para uma reforma tão ampla, há muitas
perguntas básicas sem a mínima resposta. A junção de um modelo reformista quase
secreto com a falta de embasamento técnico pode gerar um Frankenstein
institucional. Antes de mais nada, é preciso ter um mapa de evidências sobre o
funcionamento do sistema político, para, a partir disso, montar propostas e
dialogar com a sociedade. Neste processo, poderá se perceber que há assuntos
mais prioritários, os quais merecem maior atenção reformista. Ora, o que hoje é
mais importante no cipoal de reformas propostas por Arthur Lira e seus aliados?
Qual é o principal problema que está sendo atacado e por quais razões? Ninguém
tem a menor ideia. Um país que não sabe qual é o seu caminho estratégico, em
todos os planos da coletividade (economia, instituições políticas e políticas
públicas), está fadado a trilhar o sentido errado das mudanças.
O exemplo do “distritão” representa
fielmente a lógica do reformismo do Centrão. A escolha por ele seria para
eleger os que têm mais votos. Mas nenhum político brasileiro é eleito por fora
dos partidos e enfraquecê-los é o primeiro passo para piorar a qualidade da
representação, pois será priorizado o individualismo dos candidatos, sem
compromisso com pautas organizadas coletivamente e de forma constante, que é a
tarefa das agremiações partidárias em qualquer democracia do mundo.
Mas isso quer dizer que os partidos
funcionam adequadamente no Brasil? Bom, se o problema está neles, a reforma
deve ser outra, e não a alteração para um sistema eleitoral que não dialoga com
nossos problemas e não é nem referência internacional de boas práticas
institucionais. Se os partidos precisam ser mais transparentes, mais permeáveis
à participação da sociedade, ter mecanismos de controle sobre suas lideranças
evitando a oligarquização partidária, que as reformas caminhem nesta direção.
Mas quem do Centrão está interessado neste caminho?
A discussão do semipresidencialismo tem o
mesmo defeito. O diagnóstico que o embasa relaciona-se à instabilidade do
presidencialismo brasileiro. Isso seria solucionado com a indicação de
primeiros-ministros que possam cair a qualquer momento num sistema
multipartidário com partidos oligarquizados e com pouco controle social? A
mudança do sistema pode tentar substituir a dificuldade de se trocar governos
com problemas congressuais e/ou de popularidade por coalizões partidárias
também instáveis e com pouca “accountability” junto ao eleitor. O Brasil
poderia ficar mais próximo da Itália do pós-Guerra, com suas centenas de
gabinetes nos quais mandavam sempre os mesmos. Provavelmente é isso que desejam
Lira e seus amigos do Centrão.
Reformas institucionais são permanentes e
centrais na democracia. Porém, devem ser feitas de forma pública e longamente
debatidas, baseadas em diagnósticos claros e em prognósticos que calculem as
possíveis consequências das mudanças, orientadas por uma visão sistêmica que
olhe a relação entre todas as partes envolvidas (sistema partidário, eleitoral
etc.), além de guiadas por alterações incrementais e que definam prioridades,
pois não é prudente mudar tudo de uma vez só quando não se sabe os efeitos de
tanta modificação. Se fosse para escolher, seria melhor começar pela PEC
Pazuello, que delimita a indicação de militares para postos civis. A
experiência atual já nos ensinou o suficiente sobre o risco democrático de se
ter um governo militarizado e refém de um presidente autoritário.
A fórmula Lira de reformismo, no entanto,
precisa desse modelo inflacionado de propostas e com pouco tempo para debate. É
por este caminho que ele ganha poder junto aos pares, ao que se soma o pacto
orçamentário secreto que fez com o Executivo federal. Ademais, com uma agenda
de alterações legislativas inchada, não se discute e nem se define no
Legislativo o maior problema do país hoje, que ficará nas gavetas do presidente
da Câmara para que ele se transforme, de fato, no homem mais poderoso do país.
Somente as ruas podem mudar essa realidade, gritando a palavra que foi
interditada do debate pela aliança entre Bolsonaro e Lira.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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