O povo deixou de ser agente de sua própria história para se tornar espectador passivo e indiferente
Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
“Não
verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1981, é uma
obra-prima da literatura do absurdo, que antecipa em 40 anos o nosso
estranhíssimo Brasil enfermo de hoje.
Autores da literatura do absurdo têm o dom
de ver nas minúcias da realidade e nas entrelinhas anômalas da vida cotidiana
indícios de uma sociedade que, aparentemente, ainda não existe. E parece que
não vai existir. Mas que está lá, na invisibilidade enganadora da falsa
consciência do real, do que é ainda gestação de relações sociais e de
mentalidades. Uma sociedade de contraste com tudo que estamos habituados a
considerar uma sociedade “normal”.
Parece fantasia de escritor imaginoso. Cada
vez mais, porém, essas obras são verdadeiras etnografias de transformações
sociais que levarão a sociedades tão absurdas quanto suas antecipações
literárias.
Em seu primeiro livro, “Depois do sol”,
Loyola traz à luz de seus contos as revelações da noite da cidade de São Paulo.
A noite como o inverso do dia, não apenas como o diferente, a sociedade oculta.
Na antropologia brasileira, as realidades invertidas da noite de exu foram
estudadas por Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade, em “O segredo da macumba”.
O que confirma a etnografia subjacente à literatura do absurdo.
O absurdo de “O outro lado do espelho”, de Lewis Carroll, é cada vez mais real. Alice, a personagem do livro, era real, existia e entendia a narrativa nele contida. As histórias de Franz Kafka são o absurdo naturalizado.
Na fábula política do avesso do avesso de
“A revolução dos bichos”, de George Orwell, podemos, com facilidade,
identificar sociedades que conhecemos, a começar da nossa, naquela conclusão
fatídica: no baile de humanos com porcos, “já se tornara impossível distinguir
quem era homem, quem era porco”.
Em “Não verás país nenhum”, Loyola descreve
uma estranha São Paulo, progressivamente corroída pelo absurdo de um sistema de
dominação e de um modo de vida decorrente, aos quais as personagens se ajustam
com pequena estranheza.
Souza, a personagem principal, aos poucos
será diluído no emprego que não o emprega. Adelaide, sua mulher, esposa
adjetiva e praticamente imaginária, revelará com o tempo que ela é, na verdade,
o oposto da mulher pelo marido imaginada. Os habitantes da cidade enferma são
realidades irreais, desencontradas consigo mesmas, conformadas no inconformismo
meramente residual.
Loyola não pretendeu fazer sociologia,
embora haja no livro um fundo de temas sociológicos, do tipo tratado pela sociologia
fenomenológica, a que de certo modo analisa as relações sociais a partir do
imaginário que lhes dá sentido.
O absurdo descrito no romance, com o tempo,
foi se confundindo cada vez mais com a realidade. A invasão da casa-refúgio da
classe média, de Souza, é patrocinada por um sobrinho de Adelaide, a esposa que
se fora e já não existe. Estranhos passam a nela viver como se fosse sua
própria casa. Estavam à vontade no que não era seu, enquanto Souza já não
estava à vontade na casa que supunha sua. É o direito de propriedade que se
esfuma.
A realidade da classe média vai se
desgastando para passar a ser aquilo que era, uma fantasia cruel, um vazio. Uma
classe cada vez mais excluída até o ponto de se tornar parte do monturo, do
lixo da cidade. Ela se torna uma classe de descartáveis, sem lugar, seres que
não são, confinados no nada, desprovida dos valores e privilégios da sociedade
de consumo, de suas coisas cada vez mais inúteis como os móveis de apego
simbólico levados para o lixão.
Sem objeto, os sociólogos têm sua cota de
desfiguração na sociedade que se esvai. A transformação do modo de ser da
sociedade do absurdo reduzido a pseudoconceitos. Eles começavam a se esmerar na
conceituação sociológica que nada conceitua a não ser a superficialidade de uma
sociedade já desprovida de práxis e de protagonismo histórico. A sociedade que
é não sendo, a da alienação absoluta.
O absurdo observado por Loyola em 1961
tornar-se-ia a sociedade brasileira de 2021. O Brasil de hoje não é uma
surpresa, um acidente, um erro de cálculo. Lentamente, há 60 anos, ele já
estava sendo o que é hoje. O poder se tornou um jogo de aparências, um faz de
conta, não raro um circo. O povo deixou de ser agente de sua própria história
para se tornar espectador passivo e indiferente.
À luz da sociedade cinzenta da atualidade,
das incertezas de agora, dos abusos do poder paralelo e oculto, das
invisibilidades planejadas que nos manipulam e manipulam nossa própria vida,
podemos reler “Não verás país nenhum” como obra de antecipação do Brasil de
agora. Ninguém podia imaginar, porém, que a metamorfose ocorreria tão depressa
e de maneira tão amplamente perturbadora.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "No Limiar da Noite" (Ateliê, 2021).
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