Folha de S. Paulo
Eventual reeleição de Bolsonaro pode lhe
dar a carta branca que faltava
Bolsonaro ensina
muitas lições sobre democracia e constituição. Ensina, por exemplo, que
presidente engajado na supressão de limites jurídicos, se não enfrentado à
altura, vai levar instituições à fadiga e esgotamento. O regime de
irresponsabilidade, corrupção e anomia. Com a complacência de juristas da
corte.
Valores imateriais como liberdades civis e
políticas deixam de ter lastro real e passam a depender apenas da boa vontade e
das boas relações. E da sua condição social. Deixam de ser liberdades,
portanto. Já a promoção de valores materiais como desenvolvimento econômico e
redução da pobreza, na ausência de regras estáveis, coordenação institucional e
confiança, torna-se inviável e ineficiente.
Neutralizadas as instituições, a Constituição vai se tornando literatura de ficção, cartilha de legalismo fantástico. Essas não são lições novas, mas lições mal aprendidas pela análise política hegemônica. A sacralização das instituições e o apagamento dos indivíduos que as operam promovem miopia cognitiva.
O primeiro
turno das eleições de 2022 suscitou avaliações variadas.
A gestão competente da máquina eleitoral
pelo TSE mereceu
destaque. Mas não se pode esquecer as falhas do TSE e do STF em coibir práticas
que comprometem a integridade da competição eleitoral. Orçamento secreto e os
diferentes gastos criados para fins exclusivamente eleitorais são exemplos
clássicos do menu de manipulação eleitoral. Controlar depois do estrago já
feito é uma arte judicial.
Análises políticas interpretaram o
significado do volume surpreendente de votos em candidaturas bolsonaristas, que
pesquisas não detectaram. Projetaram a imensa força que eventual governo
bolsonarista poderá ter no Congresso para fazer as anunciadas reformas
autocratizantes que quiser.
Análises sociológicas reafirmaram as
evidências de aprofundamento desse conjunto eclético e retrógrado de valores,
chamado de bolsonarismo, na sociedade. As eleições teriam mostrado que ele
"se consolida e se decanta, costurou a direita tradicional, está mais
potente e capilarizado, e não foi mero acidente".
Independentemente do acerto das análises
descritivas, que tentam retratar o que passa, deixamos a dever na análise
normativa. Primeiro, pelo ângulo da teoria política, de onde vem o conceito de
democracia. É preciso se perguntar se e quando o que estamos assistindo não
poderá mais ser chamado de democracia mesmo pelos modestos parâmetros da
ciência política. E combinar quais devem ser nossos detectores.
Segundo, pelo caminho próprio da análise
jurídica, que examina a legalidade do que já aconteceu e do que pode vir a ser
a agenda "reformista" de um segundo governo Bolsonaro. Porque muitas
propostas dessa agenda, sabemos, são incompatíveis com a Constituição de 1988.
Mesmo que análises descritivas estejam
certas, cabe à análise normativa alertar para o que o que podemos deixar de
ser. Democracia constitucional não é para qualquer Bolsonaro.
Entre vitórias e derrotas no embate dos
poderes, Bolsonaro ajudou a produzir democracia imunossuprimida. Sua obra de
deterioração institucional é magnífica.
Eventual reeleição deve dar a carta branca
que faltava para acelerar o projeto. A reeleição do líder autoritário, como
mostram casos da onda de autocratização pelo mundo, da Hungria à Índia, da
Venezuela às Filipinas, é o grande gatilho dessa virada de regime que muitos
continuarão a chamar de democracia por observar que as "eleições estão funcionando".
Runciman alertou que a "democracia
pode entrar em falência mesmo permanecendo intacta". E que a ciência
política "tem pouco a dizer sobre as novas maneiras como a democracia pode
falhar". Estaria mais preocupada em entender "como a democracia
continua a funcionar" (Como as Democracias Chegam ao Fim, Ed. Todavia).
Do ventre de democracias podem nascer
autocracias. Sem alarde, sem espetáculo, com ou sem a corneta tuiteira de
general. Para quem a democracia nunca fez diferença, porque sempre foi excluído
e violentado pelo estado, tanto faz. Para quem a democracia atrapalha projetos
de acúmulo de poder, a transição é bem-vinda.
Para quem ainda quer ter a chance de
invocar direitos e participar da vida coletiva, o voto de 2022 nunca foi tão
decisivo.
*Professor de direito constitucional da
USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade - SBPC
2 comentários:
Trump e Bolsonaro eram unha e carne... Trump já foi varrido nos EUA, ainda que seus partidários continuem ocupando posições importantes! Bolsonaro está sendo varrido no Brasil, ainda que vários comparsas e cúmplices sejam eleitos! Cadeia para o GENOCIDA aqui e para Trump nos EUA!
Por enquanto ninguém sabe como será o resultado eleitoral,precisamos ter humildade.
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