quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Maria Cristina Fernandes - O novo vírus do eleitor

Valor Econômico

Vitória de Lula no 2º turno passa por entender por que Bolsonaro ganhou onde a pandemia mais matou

Fica difícil juntar lé com cré ante a notícia de que Jair Bolsonaro venceu a eleição em Manaus. Mas o desnorteio não para por aí. Levantamento do Valor Data mostra que, das 40 cidades com maior mortalidade por Covid (Manaus é a 40ª), o presidente ganhou em 38. Dos 1.498 municípios que registraram uma mortalidade por Covid-19 acima da média nacional, o ex-presidente Luiz Inácio Lula Silva ganhou em menos de um terço. Some-se ainda a eleição avassaladora do ex-ministro Eduardo Pazuello (PL) para a Câmara e a reeleição do deputado Osmar Terra (MDB), apóstolo da cloroquina.

Que país é esse? A frente ampla que, finalmente, começa a se formar em torno de Lula neste 2ª turno não deveria adiar as respostas. É um país que já não aguentava as máscaras, diz um, e já esqueceu a mortandade, diz outro. Certamente não é aquele previsto até por governistas onde cada morto produziria 100 enlutados de oposição, entre amigos e parentes. Fosse assim, Lula teria tido 68,6 milhões de votos e estaria eleito, com folga, no 1ºturno.

Se foi CPI da pandemia que pavimentou a candidatura da senadora Simone Tebet à Presidência, o espaço conquistado deveu-se mais ao desempenho esclarecido e destemido na campanha, confirmado ontem na recusa à neutralidade no 2º turno.

O reprise das cenas em que Bolsonaro imita um paciente terminal, zomba da vacina e dos coveiros da Covid certamente elevaram sua rejeição. Mas o tema não reverberou como se apostava. Há muitos recados no 1º turno, mas um deles parece ter sido o de que há uma parcela expressiva da população que rejeita o Estado-cerceador.

Não é apenas o “fique em casa que a economia a gente vê depois” que tem aderência, mas a percepção de que o Estado, ao regulamentar, fiscalizar e multar restringe a capacidade de as pessoas batalhar pela sobrevivência. Isso não é fascismo, mas uma visão libertária derivada de fracassos na mediação do bem comum.

Não é preciso fazer concessões à extrema direita para entender isso. Ignorar as motivações de 51 milhões de eleitores não dificulta apenas a obtenção de seu voto, mas também transforma a tarefa de governá-los e bem informá-los numa pedreira.

Bolsonaro abriu a maçaneta que tirou essas motivações do armário e não vai ser fácil encontrar a chave para recolocar cada coisa em seu lugar. Muitos dos motociclistas multados por dirigir sem capacete passaram a alegar, em seus recursos, que o presidente da República tampouco o faz.

Nos grupos qualitativos que acompanhou ao longo da campanha, Esther Solano testemunhou a reprise do discurso de Bolsonaro em pessoas que se viram cerceadas em seu direito de sair de casa para trabalhar com liberdade pelo ganha-pão da família.

A mesma intransigência pelo direito de sair de casa parece se aplicar a quem nela pode entrar. Entre as agruras enfrentadas pelos recenseadores do IBGE está a recusa da população a recebê-los e a responder a um questionário que inclui até o CPF.

O mote “da minha vida cuido eu”, que, na pandemia, abreviou a carreira política de João Doria e, por tabela, tirou seu sucessor do 2º turno em São Paulo, ainda invadiu a percepção sobre outra política pública civilizatória, as câmeras nos uniformes policiais.

A posição de Tarcísio Freitas, frontalmente contrária às câmeras, não o impediu de passar à liderança na disputa. Os 9,8 milhões de votos obtidos pelo candidato bolsonarista em São Paulo demonstram que não se trata de uma cultura restrita aos clubes de caçadores, atiradores e colecionadores.

Se as câmeras, comprovadamente, reduzem a letalidade policial e, por isso, precisam ser mantidas, lideranças comunitárias nas redes sociais se manifestaram contrariamente à iniciativa durante a campanha por desconfiarem de seu uso contra a população negra e periférica.

Essa cultura do empreendedorismo anti-Estado se manifestou no arrastão bolsonarista dos palanques estaduais e proporcionais. E ainda em estados como Minas, governado pelo mesmo espírito, vide a reeleição de Romeu Zema, o comerciante-governador que encarna o Estado e sua negação, do confinamento à revogação da reforma trabalhista.

Essa validação de uma coisa e de seu contrário invadiu a composição da Câmara, onde tanto aumentou a bancada dos sem-terra quanto a da bala. Entre os dois extremos, proliferou o pântano dos sócios do bolsonarismo, de olho na estatização dos seus prejuízos.

Se em Minas esse espírito não impediu que Lula ganhasse, é em São Paulo que se levanta um paredão contra o PT, sobretudo no interior, cujos votos se sobrepuseram aos da capital e selaram a derrota tanto de Lula quanto de Fernando Haddad.

O repúdio vai do grande empresário que resiste a abrir mão de bilionárias renúncias fiscais a pequenos e médios empreendedores que veem no petismo a tríade regulamentar, fiscalizar e multar.

O empréstimo consignado aos beneficiários do Auxílio Brasil, regulamentado às vésperas do 2º turno, quis incutir o espírito do empreendedorismo em quem só tem a miséria como caução.

Na adesão a Lula, com um discurso que há muito não se via na política, uma das cinco propostas de Simone foi a da bolsa-empreendedorismo para alunos do ensino médio. É pouco, mas sinaliza uma reinvenção de quem entrou no jogo a partir da pandemia. A consolidação da vantagem lulista neste segundo turno passa mais por encontrar sua pegada no tema do que pela cilada dos costumes.

2 comentários:

Anônimo disse...

Inimaginável - que país é este?
O GENOCIDA ganhar em 38 das 40 cidades com maior mortalidade por Covid mostra a falta de memória e análise dos eleitores brasileiros.

ADEMAR AMANCIO disse...

País de gente estranha,onde morreu mais gente por covid já era bolsonarista e continuou sendo.