Tais eventos, inéditos aqui e em toda parte do mundo conhecido, não duraram mais que poucas horas, contidos os tresloucados, homens e mulheres de todas as idades, vindos de todos os cantos do território nacional, conduzidos à prisão sem maiores resistências, mas deixando em seus rastros uma ação destrutiva que segue doendo na autoestima dos brasileiros com a profanação de obras da sua cultura e da sua civilização.
Resta desse desastre humano um patrimônio a
ser penosamente reconstruído, e bem mais que isso, identificar as raízes
imediatas e as profundas a que se prendem a fim de remover a insânia e as
marcas e do mal que se abriga em nossa sociedade que ainda conserva as marcas
quasímodas da nossa formação a partir da grande propriedade rural escravista.
Os acontecimentos extraordinários que nos abalaram, e ainda abalam, devem ser
estudados pela ciência social, brasileira e estrangeira, para o que se conta
não só com abundante material, mas também por uma detida investigação nas
motivações dos autores, boa parte nas prisões, que se enredaram em suas
práticas.
Como se diz, não se deve passar um pano
nesse tétrico episódio e seguir adiante. A história do país doravante, para
seguir seu curso ou decifra corretamente o que acaba de lhe ocorrer ou
sucumbirá as flores do mal que germinam em seu ventre. Apuração implacável de
suas causas, responsabilização dos que insuflam por palavras e atos a pregação
fascista e a recusa da democracia como projeto de país, deve ser o compromisso
inegociável de todos os que se opõem à barbárie que ronda a nossa vida em
comum.
As altas cortes do Judiciário têm dado
respostas adequadas aos crimes que foram praticados, mas isso não basta,
somente da política podem proceder as ações que tenham em mira o ovo da
serpente que se esconde numa sociedade de massas fragmentária, desorganizada e
com seus integrantes isolados uns dos outros. A ênfase na questão social que
tem caracterizado os inicios do governo Lula- Alkmin certamente é positiva, mas
não pode, como se tem reparado até aqui, permanecer restrita a intenções reparadoras
do Estado diante de uma sociedade absenteísta, esperando de cima que seus
direitos lhe sejam concedidos. Sem partidos que a representem, sem sindicatos e
movimentos sociais ativos, sem lugar e meios por onde possa experimentar seus
atos de fala, arriscamo-nos a reiterar o perverso itinerário que foi a base de
partida para a tragédia política que ora temos de superar.
Durante quatro anos, dia a dia, fomos
testemunhas de ações liberticidas que intencionavam abater quaisquer laços
orgânicos em nossa vida comum, negando-se realidade fática à existência dessa
coisa chamada de sociedade. O fascismo e sua pregação neoliberal das hostes
bolsonaristas só admitiam o indivíduo isolado, mônada de interesses privados
somente postos em ordem pela intervenção mítica do chefe da nação. Nesse
sentido, havia algo de misticismo no chienlit brasileiro de 8 de janeiro, em que uma massa de indivíduos ignaros, à
falta física do seu chefe, tentou baixar o seu espírito como num culto
religioso a fim de realizar a obra que lhe cabia no sentimento de todos.
Bolsonaro encarnou, assim em unção mística, a depredação em que cada
manifestante em êxtase destruía um ícone nacional.
Os alemães, depois de 1945, solenemente
prometeram que sua tragédia nacional não mais se repetiria, e conseguiram.
Seremos capazes do mesmo?
*Luiz Werneck Vianna. Sociólogo, PUC-Rio
4 comentários:
Excelente texto, parabéns ao autor e ao blog que o divulgou! No penúltimo parágrafo, ele fala da manada...
Estava aguardando ansiosamente a fala de Werneck. Tenho certeza que poucos corações sentiram tanto a intentona bolsonaresca. Werneck continua comendo o C de Alckmin e começa seu artigo dizendo que o fascismo brasileiro, que proponho seja chamado de fascismo bundalelê, é "Sem doutrina, sem partido e avesso à política" (cont.).
Muito boa a análise do colunista.
O que é estarrecedor é por um lado um fascismo bundalelê. E por outro ameaças gravíssimas como a do empresário que queria explodir 60 mil litros de querosene de avião em Brasília. E militares coniventes com isso.
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