Correio Braziliense
Faz 135 anos que o deputado pernambucano
Joaquim Nabuco, da janela do Paço Imperial, gritou para a multidão reunida:
"Não há mais escravos no Brasil"
Faz 135 anos que o deputado pernambucano
Joaquim Nabuco, da janela do Paço Imperial, gritou para a multidão reunida:
"Não há mais escravos no Brasil". Na sala ao lado, a princesa regente
acabava de sancionar a Lei Áurea, aprovada na Câmara e no Senado, depois de 10
dias de debates parlamentares. Tudo indicava que chegaram ao fim os 350 anos do
mais brutal sistema social adotado pela humanidade: a escravidão industrial que
trouxe mais de 4 milhões de africanos, inclusive 800 mil mulheres, e produziu
um número até hoje desconhecido de escravos nascidos no território brasileiro
para serem vendidos, sujeitos a todo tipo de maus-tratos e exploração.
Eufóricos com a conquista do fim da escravidão, os abolicionistas não imaginavam que atravessaríamos do século 19 ao 20 e deste ao 21 com pessoas em condições servis. Não mais vendidas e compradas, porque os escravos estão disponíveis nas esquinas das cidades e se submetem a esses trabalhos como forma para subsistir. Nabuco e outros alertaram que, sem distribuição de terra e escolas, a abolição não estaria completa, mas dificilmente imaginariam o quadro de pobreza e a consequente escravidão que ainda temos, quase um século e meio depois daquele grito, desde a varanda do Paço.
Os escravos não vêm da África, não
precisavam ser capturados, amarrados, transportados e vendidos, nem nascem com
o carimbo de escravos. Eles são fabricados pela negação de escola com
qualidade, que os joga na pobreza. Todos os libertados do trabalho servil,
neste ano de 2023, são analfabetos ou têm baixíssimo nível educacional por
falta de escola: sem matrículas, sem frequência, ou em tão ruins que podem ser
consideradas escolas negreiras, que levam à escravidão, como faziam os navios
da época.
A realidade seria completamente diferente
se, além do art. 1º (É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão
no Brasil), a Lei Áurea, tão comemorada na tarde daquele domingo 13 de maio de
1888, tivesse mais um artigo: art. 2º — Fica estabelecido um Sistema Único
Nacional Público de Educação de Base em todo o território brasileiro. Se, desde
então, o Brasil tivesse iniciado a implantação desse sistema único para os
filhos dos ex-escravos e dos seus ex-proprietários, nosso país não seria hoje
território de desigualdade social extrema, racismo estrutural, baixa produtividade,
violência urbana. Assumindo que a tarefa estava cumprida com o único artigo que
decretava não existir mais escravos no Brasil, por mais de 100 anos a educação
foi negada aos milhões de pobres, descendentes sociais dos escravos.
Quando — muito recentemente — colocamos nas
leis a obrigatoriedade de oferecer vagas em escolas públicas para todos,
mantivemos a última trincheira da escravidão: a desigualdade na qualidade das
escolas, conforme a classe social e o endereço de cada criança. Nosso sistema educacional
continua dividido entre escolas senzala para muitos e escolas casa grande para
poucos com dinheiro ou sorte. Nos 135 anos desde a Abolição, essas escolas
negreiras conduziram mais candidatos à escravidão do que os navios negreiros
por 350 anos. E sem que um Castro Alves moderno cante o sofrimento de um
analfabeto.
E sabemos que é preciso completar a lei dos
abolicionistas lutando para que o Brasil tenha um sistema único nacional
público de educação de base; com professores bem remunerados, bem formados, bem
selecionados, comprometidos e avaliados, todos em uma mesma carreira federal,
não importa em que cidade estiver ensinando; em escolas com prédios bonitos e
confortáveis, com equipamentos modernos; todas crianças em horário integral,
respeitando o itinerário escolhido pelo aluno: os filhos dos pobres na mesma
escola que os filhos dos ricos. Um sistema com qualidade, entre os melhores do
mundo, com escolas de absoluta equidade entre elas, capazes de oferecer a cada
brasileiro o conhecimento necessário para caminhar no século 21, na busca da
própria felicidade e na construção do Brasil melhor e mais belo, que todos
desejamos.
Diferente da Lei Áurea, que depois de
décadas de luta foi assinada e entrou em vigor com uma assinatura, a segunda
abolição requer implantação ao longo de décadas, graças a um pacto entre os
brasileiros, graças ao que Nabuco chamou de "instinto nacional" pelo
progresso econômico e justiça social. Essa é a tarefa que Nabuco e todos os
guerreiros contra a escravidão, desde Zumbi dos Palmares, nos deixaram: a
construção de um sistema único nacional público de educação de base.
*Professor emérito da
Universidade de Brasília (UnB)
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