quarta-feira, 26 de julho de 2023

Martin Wolf* - Índia de Modi trilha um caminho iliberal

Valor Econômico

Este governo está montado sobre o tigre da religião politizada na esperança de avançar na longa jornada rumo ao objetivo de criar uma Índia moderna, próspera e forte. A questão não é apenas onde o governo irá terminar, mas se conseguirá evitar ser devorado em sua jornada

A Índia de hoje é uma “democracia iliberal”. A Freedom House, um centro de estudos americano, a coloca no mesmo nível que a Hungria, cujo líder, Viktor Orbán, cunhou o termo. Os componentes, porém, são classificados de forma diferente: na Índia, os direitos políticos, em especial a política eleitoral, são mais saudáveis do que na Hungria, mas os direitos civis são mais fracos. Pior ainda, sob o governo do partido BJP, no poder desde 2014, os direitos civis têm sofrido uma alta deterioração. As classificações da democracia indiana ainda são muito superiores às de países como Bangladesh, Paquistão ou Turquia. Ainda assim, o país não é uma “democracia liberal”: a Freedom House simplesmente rotula o país como “parcialmente livre”.

No entanto, à medida que a política da Índia se torna menos liberal, seu governo tem ficado mais eficaz. Indicadores do Banco Mundial mostram que a “estabilidade política e ausência de violência”, o “controle da corrupção”, a “qualidade da regulamentação” e a “efetividade do governo” melhoraram desde que Narendra Modi se tornou primeiro-ministro. Por outro lado, houve pioras nos critérios “voz [dos cidadãos] e responsabilização [das autoridades]” e “Estado de Direito”. O governo de Modi é mais repressivo e mais eficaz que o de seus antecessores.

Conforme observado por Ashutosh Varshney, da Universidade Brown, no estudo “India’s Democratic Longevity and Its Troubled Trajectory”, a forte democracia do país era uma anomalia. Não deveria ter durado em um país agrícola com alto índice de analfabetismo. Sim, essa democracia era imperfeita, com altos níveis de corrupção e violência, para não falar da “emergência” de Indira Gandhi em meados década de 1970. Mas funcionava.

A hipótese de Varshney é que a ideologia política desempenhou um papel central primeiro criando a democracia e agora enfraquecendo-a. Os fundadores da Índia independente acreditavam na democracia. Com o tempo, à medida que a política do país foi se tornando mais fragmentada, os políticos acreditavam que a democracia também estava no interesse deles, pois lhes permitia ter a esperança de lutar por outro dia. No entanto, os nacionalistas hinduístas de hoje têm um ponto de vista diferente: para eles, um verdadeiro indiano precisa ser hinduísta. Aqueles que os criticam são “antinacionais” e, portanto, inerentemente traidores.

Esse ponto de vista justifica medidas administrativas e legais contra vozes independentes em universidades, centros de estudo e meios de comunicação. O governo agora pode denominar qualquer indivíduo como terrorista com base em textos e discursos pessoais ou em publicações em redes de relacionamento social on-line ou na literatura encontrada em seu poder. De acordo com Rahul Mukherji, cerca de 17 mil organizações da sociedade civil tiveram o registro formal, ou sua renovação, negados desde 2015. Além disso, os direitos das minorias, em especial dos muçulmanos, estão sob ataque, não apenas por meio da lei ou decretos administrativos, mas também da violência de grupos de justiceiros.

Tudo isso é claramente iliberal, mas será que também é antidemocrático? Os que têm a maioria argumentam ter o direito de fazer o que desejam porque venceram. Rahul Gandhi, um importante político de oposição, foi condenado a dois anos de prisão por declarações que fez sobre Modi. Além disso, como ocorre muitas vezes nas eleições multipartidárias de maioria simples, o BJP ganhou uma grande maioria de assentos em 2019, apesar de obter menos de 40% dos votos. Isso dificilmente pode ser considerado uma verdadeira maioria.

Precisamos lembrar, porém, que direitos democráticos, por si só, não enchem barrigas vazias nem geram bons empregos. De forma encorajadora, um relatório recente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) argumenta que entre 2005 e 2021, 415 milhões de pessoas foram tiradas da “pobreza multidimensional” na Índia e que a incidência da pobreza caiu de 55% para 16%. As maiores quedas ocorreram nos Estados e nos “territórios da União” [de administração federal] mais pobres. O governo de Modi deveria levar uma boa parte do crédito por isso.

Ao mesmo tempo, como observa Ashoka Mody, os números sobre o emprego na Índia são persistentemente fracos. Além disso, a taxa de crescimento da economia não teve aceleração sob o governo do BJP. Mesmo o acesso digital universal de hoje do projeto “India Stack” e a bem-sucedida distribuição direta de pagamentos de bem-estar social derivam do sistema de identidade único criado por Nandan Nilekani, cofundador da Infosys, quando o primeiro-ministro da Índia era Manmohan Singh. Além disso, um governo forte e centralizado pode cometer grandes erros. A “desmonetização” em 2016 foi um desses erros. Outro foi o lockdown contra a covid-19 em março de 2020, que obrigou cerca de 40 milhões de trabalhadores migrantes a retornarem a suas casas, muitos deles a pé. Além disso, governos desse tipo costumam ter relações demasiado próximas com empresários amigos.

Para alguém que há tanto tempo admira a vitalidade e diversidade da democracia indiana, esse crescente iliberalismo é deprimente. E é particularmente deprimente diante do papel cada vez maior da Índia no mundo. Não consigo ver nenhuma boa razão pela qual uma sociedade em grande medida hinduísta não deveria tolerar fés minoritárias. Também não vejo razão para que arremeta contra uma sociedade civil diversificada. No entanto, é para onde o governo de Modi parece estar caminhando.

Aqueles que estão preocupados com esse quadro serão rebatidos com o contra-argumento de que os hinduístas são altamente tolerantes. Segundo um estudo de 2021 da Pew Fundation sobre atitudes religiosas, 85% dos hinduístas (que representam 80% da população) acreditam que “respeitar todas as religiões é muito importante para ser verdadeiramente indiano”. Infelizmente, os 15% que não compartilham dessa visão são 90 milhões de adultos.

Além disso, quase 70% dos hinduístas dizem que é muito importante ser hinduísta para ser “verdadeiramente” indiano. Portanto, a política de identidade religiosa traz perigos tanto para a liberdade quanto para a estabilidade, mesmo na Índia.

Este governo está montado sobre o tigre da religião politizada na esperança de avançar na longa jornada rumo ao objetivo de criar uma Índia moderna, próspera e forte. A questão não é apenas onde o governo irá terminar, mas se conseguirá evitar ser devorado em sua jornada. (Tradução de Sabino Ahumada)

*Martin Wolf é editor e principal analista de economia do Financial Times

 

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