"Todavia, se também a filosofia da práxis é uma expressão das
contradições históricas — aliás, é sua expressão mais completa porque consciente —, isto significa que ela está também ligada à “necessidade” e não à “liberdade”, a qual não existe e ainda não pode existir historicamente. Assim, se se demonstra que as contradições desaparecerão, demonstra-se implicitamente que também desaparecerá,
isto é, será superada, a filosofia da práxis: no reino da “liberdade”, o
pensamento e as ideias não mais poderão nascer no terreno das contradições e da necessidade de luta. Atualmente, o filósofo (da práxis)
pode fazer apenas esta afirmação genérica, sem poder ir mais além; de
fato, ele não pode se evadir do atual terreno das contradições, não
pode afirmar, a não ser genericamente, um mundo sem contradições,
sem com isso criar imediatamente uma utopia.
Isto não significa que a utopia não possa ter um valor filosófico,
já que ela tem um valor político e toda política é implicitamente uma
filosofia, ainda que desconexa e apenas esboçada. Neste sentido, a
religião é a mais gigantesca utopia, isto é, a mais gigantesca “metafísica” que já apareceu na história, já que ela é a mais grandiosa tentativa de conciliar em forma mitológica as contradições reais da vida
histórica: ela afirma, na verdade, que o homem tem a mesma “natureza”, que existe o homem em geral, enquanto criado por Deus, filho de
Deus, sendo por isso irmão dos outros homens, igual aos outros
homens, livre entre os outros e da mesma maneira que os outros, e
que ele pode se conceber desta forma espelhando-se em Deus, “autoconsciência” da humanidade; mas afirma também que nada disto pertence a este mundo e ocorrerá neste mundo, mas em um outro (— utópico — ). Assim, as ideias de igualdade, liberdade e fraternidade fermentam entre os homens, entre os homens que não se veem nem
iguais, nem irmãos de outros homens, nem livres em face deles.
Ocorreu assim que, em toda sublevação radical das multidões, de um
modo ou de outro, sob formas e ideologias determinadas, foram colocadas estas reivindicações."
*Antonio Gramsci (1891-1937), "Cadernos do Cárcere", p.204-5. 4ª edição. Civilização Brasileira, 2006.
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