Valor Econômico
Trajetórias de Marielle e dos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão expõem o melhor e o pior da política brasileira
Eu já me preparava para dormir no dia 14 de
março de 2018 quando comecei a ler nos portais da internet informações sobre o
assassinato de uma vereadora do Rio de Janeiro e de seu motorista. A notícia
logo me chamou a atenção, por representar uma escalada no nível de violência da
política brasileira, num momento em que a polarização da sociedade já se
encontrava em ebulição.
Confesso que até então eu nunca havia ouvido falar de Marielle Franco. Porém, conforme escrevi no dia seguinte no blog “O E$pírito das Leis”, que eu mantinha na “Folha de S.Paulo” na época, logo percebi que Marielle era mais do que a cara do Brasil - ela era o símbolo de uma nova geração de políticos que surgia no país.
Marielle era mulher, negra e jovem; cresceu
na favela da Maré, engravidou na adolescência e foi mãe solo. Apesar de todas
as adversidades impostas a quem faz parte desses grupos sociais, ela superou o
determinismo estatístico por meio do esforço e da educação: com o apoio de um
cursinho pré-vestibular para alunos carentes, passou no vestibular da PUC-Rio,
conseguiu uma bolsa integral, formou-se em ciências sociais e fez mestrado em
administração pública na Universidade Federal Fluminense.
Disposta a transformar a realidade em que
vivia, Marielle escolheu a política como vocação. Durante anos foi assessora
parlamentar de Marcelo Freixo na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa.
Ao se lançar como candidata a vereadora em 2016, escolheu o Psol, sigla que
buscava oxigenar o campo da esquerda. Com uma campanha financiada por pequenas
doações, foi a quinta candidata mais votada, com expressivos resultados obtidos
tanto na Maré quanto na Zona Sul.
Até ter a sua vida barbaramente interrompida
pelos disparos efetuados por Ronnie Lessa, Marielle defendeu as suas causas no
exercício do mandato, apresentando projetos sobre saúde da mulher, reinserção
social de menores infratores, campanhas de conscientização contra a homofobia e
a violência sexual e ampliação dos programas de creches. Enfrentou também o
poder econômico ao propor o fim da isenção de impostos para empresas de ônibus
e restrições à terceirização dos serviços de saúde.
Um caminho bem diferente foi trilhado pelos
irmãos Domingos, Chiquinho Brazão e o delegado Rivaldo, que acabam de ser
presos como suspeitos de mandar matar Marielle Franco e Anderson Gomes, junto
com o ex-chefe da Polícia Civil do Rio, Rivaldo Barbosa.
Domingos ganhava a vida revendendo carros e
com o tempo montou uma rede de dezenas de postos de combustíveis. Elegeu-se
vereador em 1996 e, dois anos depois, conseguiu uma vaga na Assembleia
Legislativa. A partir daí foi reeleito deputado estadual quatro vezes seguidas,
e após 17 anos de mandato, foi nomeado para o cargo de conselheiro do Tribunal
de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), órgão responsável por
fiscalizar as contas do governo estadual e das prefeituras fluminenses.
Chiquinho seguiu os passos do irmão e
tornou-se vereador carioca em 2005, tendo exercido quatro mandatos
consecutivos. Na última passagem pela Câmara Municipal, foi colega de plenário
de Marielle Franco. Em 2018, surfando na onda do bolsonarismo, Chiquinho chegou
a Brasília como deputado federal, sendo reeleito quatro anos depois.
A atuação política dos irmãos Brazão é
marcada por suspeitas de envolvimento com o crime organizado - e pela
impunidade. Domingos foi investigado em 2004 por um esquema de distribuição de
licenças ambientais fraudulentas para empresários ligados à máfia dos
combustíveis. Em 2011, chegou a ter seu mandato cassado após denúncias de
compra de votos, mas foi absolvido pelo Tribunal Superior Eleitoral. Já
Chiquinho foi acusado de proteger os empresários de transporte coletivo quando
presidiu a CPI dos Ônibus.
Com sua base eleitoral localizada na Zona
Oeste do Rio, os irmãos já haviam sido investigados pela CPI das Milícias,
presidida por Freixo em 2008. Outras denúncias de ligações com o Escritório do
Crime apareceram mais recentemente.
Domingos Brazão ficou quatro anos e meio
preso após a Polícia Federal descobrir que ele e mais cinco colegas do TCE-RJ
haviam recebido propina para favorecer empreiteiras em obras superfaturadas.
Todos foram soltos e autorizados a reassumir os cargos em 2022 por decisão do
ministro Kassio Nunes Marques, do STF.
Mesmo com todas as suspeitas de envolvimento
dos Brazão com o assassinato de Marielle Franco, o prefeito carioca Eduardo
Paes (PSD) nomeou Chiquinho como seu secretário especial de Ação Comunitária em
outubro do ano passado.
Chiquinho deixou o cargo poucos dias após o
anúncio da delação premiada de Ronnie Lessa. Paes, obviamente, dirá que não
sabia de nada.
Seis anos depois que a sociedade brasileira
começou a cobrar quem matou e depois quem mandou matar Marielle e Anderson,
precisamos agora saber por que Domingos e Chiquinho teriam contratado Ronnie
Lessa para praticar o duplo assassinato.
Mantenho minha conclusão do texto que escrevi
naquela noite em que tomei conhecimento do crime e da trajetória da vereadora
brutalmente morta. “O assassinato de Marielle Franco é um atentado contra a
tentativa de renovação da política brasileira”, dominada pela violência e pela
criminalidade.
*Bruno Carazza é professor associado da
Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do
sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Um comentário:
Simples assim,cristalino feito água.
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