Folha de S. Paulo
Preocupam a alienação e a distância que se
toma da emancipação humana
Livros são um prazer. Além do conteúdo, as
conexões que provocam com outras obras me gratificam.
"A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal", de
Pierre Dardot e Christian Laval, surpreendeu pela quantidade de referências
que me vieram à mente. Como em um caleidoscópio, convidei para
"conversar" Friedrich
August von Hayek, John
Maynard Keynes, Fernando
Henrique Cardoso, Michel
Foucault, Karl Marx e
representantes da Escola
de Chicago.
Crítico que sou, a ideia de que há algo sensato em uma sociedade liberal não me convence. O colonialismo foi uma dominação capitalista. Parafraseando Caetano Veloso, cantarolei "como são lindos os neoliberais, mas tudo é muito mais" ("Podres Poderes", 1984). Fique claro que a "nova razão" dos autores está associada ao novo sentido e à pretensão holística do neoliberalismo. A dominação sobre a economia é só o ponto de partida. Dardot e Laval utilizam complexas análises históricas e sociais, além de outras psicanalíticas, para fundamentar a obra. Talvez o pensamento que melhor sintetize o neoliberalismo esteja na frase da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher: "A economia é o método. O objetivo é mudar a alma". A ideia assombra, mas faz sentido.
Para os detratores de ideologias, sejam elas
quais forem, os intelectuais recorrem à interpretação vanguardista com a
precisa fundamentação filosófica de Michel Foucault e Karl Marx, entre outros,
com o propósito de revelar o mito neoliberal da objetividade econômica.
Neoliberalismo é ideologia, sim, e das mais complexas! A psicanálise é outra
ferramenta indispensável para elucidar o problema. Muitos fantasmas e cobranças
que ocupam nossa mente vêm dessa "nova razão". Corpo perfeito,
família perfeita e profissional perfeito são idealizações imaginárias que
alimentamos sem cuidado. A alienação e a distância que se toma da emancipação
humana, proposta por Marx, preocupam.
Na política, a deterioração da democracia
parece algo natural nessa
nova diretriz. Ao neoliberalismo não importam liberdade e justiça, exceto
se estiverem em favor do sistema de dominação e lucro. Políticos como o
estadunidense Donald Trump conseguem
manter a popularidade e podem voltar à Presidência, mesmo após a prática de
criminosos atos
antidemocráticos. Ainda que a economia seja um pilar importante na
avaliação dos cidadãos, questões como xenofobia, discriminação, violência e
outras são ignoradas dentro da cultura neoliberal. Está
aberto o caminho para discursos totalitários.
Ao contrário do interesse da sociedade, está
no consenso que o controle da coisa pública pelo setor privado é a melhor
opção. Ou seja, o cidadão prefere não fazer parte da administração dos seus
impostos. Assim, além de atestar a própria incapacidade de atuar na vida do
país, o eleitor afirma que o setor privado —que objetiva o lucro— está mais
imbuído de melhores intenções do que o gestor público. A dominação não é só
econômica, a "alma" já está comprometida.
Talvez desenvolvimentistas como Hayek e
Keynes não tivessem a dimensão do
que se tornaria o neoliberalismo. O combate às teorias que privilegiavam
iniciativas coletivas e a valorização de ações individuais não acabariam em uma
cultura de dominação tão ampla, até psiquiátrica. Isso não estava no horizonte
dos representantes da Escola de Chicago; eles pensavam em melhorar a economia.
Menos ainda em Fernando Henrique Cardoso e sua "Teoria da
Dependência", que, confrontada com o seu exercício do poder, revela a
luta entre o pensador e o político. Mas, de alguma forma, todas essas teses
compõem a base do neoliberalismo real.
A dinâmica da economia funciona com uma
complexidade que não é vista pela maioria das pessoas. Ações nas Bolsas de
Valores são movidas ao sabor das especulações. Apenas a minoria consegue
avaliar quanto o sistema é invasivo no seu cotidiano. Os que têm boas
interpretações da realidade devem contribuir para a construção da liberdade
mais plena de todos nós. Nesse sentido, o livro de Dardot e Laval traz a lição:
a consciência de que vida humana e suas relações devem estar acima de qualquer
interesse econômico.
*Jornalista, professor e escritor, é doutor
em educação, arte e história da cultura; autor, entre outros, de “A Vila que
Descobriu o Brasil” (Geração), “Justiça Seja Feita” (Sesi-SP) e “Memórias de um
Tempo Obscuro” (Contexto)
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