O Globo
Ao criar a França muçulmana, Houellebecq
talvez tenha pensado no Brasil
Em “Submissão”, Mohammed Ben Abbes, apoiado
por uma frente ampla política, é eleito presidente da França. Até a vitória,
mostra-se tipo cordato, democrático, embora desde o início não esconda as
garras — sua chapa chama-se Fraternidade Muçulmana. Logo coloca em marcha suas
crenças religiosas, explicitadas em políticas de governo, apesar de o Estado
ser laico. Por estar ancorado em convicções como liberdade de expressão e
opinião, mesmo em defesa de quem tenha laivos ditatoriais, o eleitorado tolerou
o santo e agora ajoelha no milho.
É a burcarização da sociedade.
O romance de Michel Houellebecq, de 2015, pode ser visto como distopia, à semelhança de “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley. Mais fácil entendê-lo como alarme dirigido aos liberais radicais. Defensores contumazes da circulação de ideias, formam uma turma que por vezes morre pela boca. A liberdade irrestrita de manifestação não tem limites? Estão aí as redes sociais como exemplo da terra sem a lei dos homens, onde reinam lunáticos e jagunços, em campanha permanente contra o asseio.
Na ficção de Houellebecq, autor provocativo
aos olhos dos identitários, a vitória do candidato muçulmano deu-se a despeito
de todos os sinais de que governaria à luz dos ditames de sua religião. Havia
uma soberba intelectual de que as regras democráticas estariam imunes a
pistoleiros. Tá. Parece ingênuo pensar que a política seja algo limpo e
honesto. A sociedade não é constituída apenas por anjos.
Fora da boa ficção, a História está aí com
seu mundo terreno e infernos em rotação. Não esqueça que o nazismo chegou ao
poder pelas urnas; as milícias hitleristas já perseguiam os judeus nas ruas
de Munique e Berlim.
Ali havia eleitores entusiasmados com os crimes — e brigariam se chamados de
antissemitas. Noutro diapasão, mais tupiniquim e sem ser bazófia, Bolsonaro
jamais escondeu ser homofóbico, misógino e golpista. Foi eleito. Há 60 anos
ocorria em São Paulo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade com milhares
de fiéis pedindo golpe militar. Por longos anos, relembro, aqueles pais de
família e senhoras constritas acharam normal seus adversários serem torturados,
mortos ou sequelados. Quem liga para isso? Não se tratava de gente que pensasse
como eles. Para o inferno!
Até que um dia elegem algum Mohammed Ben
Abbes, e seus filhos acabam no pau de arara.
Houellebecq é escritor, cria histórias e
personagens. Sua escrita incomoda a esquerda e a direita porque traz sempre uma
contemporaneidade amarga e ácida, incômoda, difícil de digerir sem um esgar.
Arte que não mexe com o estômago não é arte, escrevia outro pensador francês,
Roland Barthes. “Submissão”, claro, foi acusado de intolerância com a religião,
de cevar preconceitos (você conhece o tatibitate). Por acaso, o lançamento do
livro foi simultâneo ao atentado contra o semanário satírico Charlie Hebdo. Doze
pessoas foram mortas. O jornal costumava ironizar Maomé e seus fiéis. Em torno
dos assassinatos e do enredo da obra, a França se perguntou: é certo brincar
com a crença alheia? É meu direito discordar do catecismo? Ou achar engraçado
quem jejua em dia santo? Quantas virgens ganharei? Por fim: não crer em Deus
não é algo a respeitar?
A literatura brasileira contemporânea parece
mais preocupada em seguir uma toada engajada — e em fazer justiça pelas
próprias mãos. É mais o “espírito do tempo e menos uma individualidade
própria”. Tem muito Itamar Vieira Junior e pouco Reinaldo Moraes para criar
personagens neopentecostais usurpadores da fé e da poupança popular. Eu vos
direi, se dizem cristãos atados ao Velho Testamento, portanto ainda antes de
Jesus.
Ao criar a França muçulmana, Houellebecq
talvez tenha pensado no Brasil. Aqui evangélicos eleitos com o dinheiro do
fundo eleitoral atrasam a política pública de saúde, a liberdade individual das
mulheres e até o currículo escolar; evocam Jesus para combater a
descriminalização da maconha. Na pandemia, esconjuraram o “fique em casa”.
Nunca acredite em dízimo digital!
Mas nenhum escritor imaginaria o seguinte enredo: um ditador sul-americano, aquele que encarcera os adversários políticos, ganha apoio à sua reeleição de um pastor-empresário-empreendedor. Aleluia. Em troca, como acontece no Brasil, abocanha isenções fiscais.
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