Folha de S. Paulo
Ex-presidente ficou dois dias na embaixada da
Hungria, em Brasília, logo após ação da Polícia Federal
Quando o STF (Supremo
Tribunal Federal) pediu que o ex-presidente Jair
Bolsonaro entregasse seu passaporte à Justiça, a intenção era impedir
que ele deixasse o país.
Se Bolsonaro passou dois
dias dentro da embaixada da Hungria, em Brasília, ele, de alguma forma,
burlou essa medida judicial, pois, nos termos da Convenção de Viena de 1961,
embaixadas e consulados, assim como seus veículos, são protegidos.
Ou seja, nos dois dias em que esteve abrigado
ali, Bolsonaro estava inalcançável pela Justiça de seu próprio país. Se a
Justiça foi atrás dele nessas 48 horas ou não, isso é apenas um detalhe. No que
diz respeito à oferta de proteção internacional, ela ocorreu na prática.
Quem duvida pode dar uma relembrada no caso de Julian Assange, o fundador do Wikileaks, que passou sete anos vivendo dentro da embaixada do Equador, em Londres, para evitar a captura, ordenada por autoridades inglesas.
Ou ainda o caso do senador boliviano Roger
Molina Pinto, que, em 2013, passou 15 meses vivendo num quartinho da embaixada
do Brasil, em La Paz, onde foi recebido porque dizia ser um opositor perseguido
pelo governo do então presidente Evo Morales.
O asilo é uma figura jurídica criada para
proteger perseguidos políticos.
Não deixa de ser irônico que um político cuja
carreira foi construída sobre o enaltecimento da ditadura militar possa ter
buscado amparo num instrumento que se tornou célebre justamente por ter
protegido dissidentes políticos que, nos anos 1960 e 1970, buscavam nas
embaixadas estrangeiras uma espécie de última instância extraordinária e
informal de recurso contra os governos militares latino-americanos, na
esperança de conseguir algo que, na prática, fizesse as vezes de um habeas
corpus.
A rigor, Bolsonaro
até pode pedir asilo, assim como o premiê húngaro, Viktor Orbán, tem o
direito de conceder.
Para a operação funcionar, basta que os dois estejam de acordo sobre o fato de que o ex-presidente brasileiro é vítima de uma perseguição injusta, movida com objetivo político e sem respeito às garantias e liberdades individuais. Não precisa ser verdade. Basta que ambos estejam de acordo.
A concessão de asilo é normalmente uma
prerrogativa de presidentes da República e primeiros-ministros. Não é o tipo de
instrumento jurídico que dependa de análise de cortes supremas e de parlamentos
nacionais para que seja concedido.
É, em muitos países, uma espécie de
superpoder presidencial, assim como são os famosos indultos e perdões
presidenciais, sobre os quais recai grande dose de personalismo de parte de
quem concede e de quem recebe.
Apesar dessa grande dose de
discricionariedade, esse direito está previsto no artigo 14 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 –direitos humanos que, aliás, já foram
chamados de "esterco da vagabundagem" pelo ex-presidente brasileiro.
Há, portanto, regras, embora elas sejam muito menos estritas que as aplicáveis aos refugiados, categoria que só pode ser acessada por quem de fato prova, diante de um comitê de análise de pedidos, a existência de um fundado temor de perseguição, nos termos da Convenção Relativa ao Estatuto do Refugiado de 1951.
O asilo é, portanto, uma espécie de faixa
preferencial em relação ao refúgio, por onde tramitam pedidos personalíssimos
de proteção internacional, sem requerer tanta fundamentação e trâmite
burocrático – é um instrumento mais fácil de ser pervertido, portanto, que o
refúgio.
A defesa do ex-presidente brasileiro já
afirmou que ele esteve na "embaixada magiar" apenas para atualizar
"os cenários políticos das duas nações".
De acordo com os advogados de Bolsonaro,
"quaisquer outras interpretações que extrapolem as informações aqui
repassadas se constituem em evidente obra ficcional, sem relação com a
realidade dos fatos e são, na prática, mais um rol de fake news".
Então, de acordo com essa versão da
realidade, Bolsonaro passou dois dias atualizando autoridades húngaras sobre os
cenários políticos dos dois países. Em 48 horas, daria para contar toda a
história do Brasil. Em todo caso seria mais uma reunião que poderia ter sido um
email.
*Jornalista e autor de “Ser Estrangeiro –
Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História”, trabalhou no Comitê
Internacional da Cruz Vermelha
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