O Estado de S. Paulo
O que mais espanta é vermos a própria máquina do Estado configurar-se como um agravante das desigualdades
Em 2021, o grande jurista Modesto Carvalhosa,
com a intenção de estimular o debate público sobre reforma da Constituição,
publicou um denso projeto, com o subtítulo “De um país de privilégios para uma
nação de oportunidades”.
Como toda a (minúscula) parcela pensante de nossa sociedade, o nobre jurista antevê nossos já inaceitáveis índices de desigualdade social afundando-se de vez numa desabrida sociedade de castas. Termo de origem incerta, o Dicionário Aurélio define casta como uma “camada hereditária e endógama, cujos membros pertencem à mesma etnia, profissão ou religião”, podendo o termo também designar, num plano mais geral, “raça, linhagem ou classe”. Ouso fazer uma ressalva a essa definição, que me parece distar anos-luz do conceito que ora nos interessa. Sociedades de casta são obscenamente desiguais e excludentes. Antepõem todos os obstáculos concebíveis à mobilidade social ascendente, mantêm-se virtualmente petrificadas e submetem as camadas mais baixas a extremos de humilhação.
Comecemos pelas etnias. No caso brasileiro, a
referência imperativa é evidentemente a escravidão. O Brasil foi colonizado
dentro do modelo econômico da monocultura de exportação, o que teria sido
impossível sem a mão de obra escrava. Dada a escravidão, não se requer nenhuma
argúcia para entender que os pretos estariam condenados a permanecer ao rés do
chão durante séculos: menos escolarizados, sem condições adequadas de saúde e
saneamento, e como alvos de um permanente preconceito. Vítimas preferenciais da
violência policial e majoritários atrás das grades.
Mas vamos devagar com o andor. O Brasil é um
país miscigenado. O maior grupo populacional são os “pardos” (terminologia do
Censo), também designados como mulatos ou morenos. Nas duas pontas, os brancos
e os pretos propriamente ditos. O que os define é a cor da pele, não o sinistro
conceito do “pingo de sangue”, que leva os norte-americanos a considerar negros
quem quer que tenha um minúsculo traço de “negritude”. Para eles, a candidata
presidencial Kamala Harris, que para nós é manifestamente morena, é preta. E,
felizmente, não adotamos a hipocrisia “politicamente correta” de os denominar
“afro-americans”. Para nós, preto é preto, moreno é moreno, branco é branco. E
nunca é demais lembrar que foi só em 1957, no episódio de Little Rock
(Arkansas), que a segregação racial no transporte escolar foi proibida, por
ordem da Suprema Corte.
Muito pior que a herança escravista, no
Brasil, o que mais espanta é vermos a própria máquina do Estado, em vez de
exercer uma influência igualitária, configurar-se cada vez mais como um
obstáculo à mobilidade, vale dizer, um agravante da petrificação e das
desigualdades. No passado, o segmento que mais se destacava nesse nefando papel
era a advocacia. Hoje, com a “proletarização” dos bacharéis, as posições de
poder mais influentes são as dos especialistas em economia e dos militares.
Nessas duas áreas, podemos afirmar sem temor de errar que os filhos, com um
regular preparo educacional, “herdarão” a condição de casta dos pais.
Analisar a participação do Judiciário nesse
processo seria trabalho para meses. Com o beneplácito dos leitores, vou, pois,
me limitar à contribuição prestada por Ricardo Lewandowski, um exímio
conhecedor de certas áreas turvas da “Constituição Cidadã”. Qualquer
primeiranista de Direito sabe que a Constituição permite aos juízes acumular os
proventos precípuos da função judicante com aulas, ou seja, com atividades de
ensino, em estabelecimentos para tal credenciados, seguindo o currículo vigente
e procedendo à chamada nominal dos estudantes. Aulas, permitam-me sublinhar.
Mas a Constituição absolutamente não permite acumular os proventos da função
com palestras, que são exposições regiamente remuneradas, geralmente
contratadas por grandes empresas, com o objetivo de esclarecer alguma matéria
importante para suas atividades lucrativas. Pois bem: anos atrás, ocupando a
presidência do Conselho Nacional de Justiça, o douto ministro Lewandowski
decidiu que aula e palestra são a mesma coisa. Aberta, assim, a porteira,
numerosos juízes passaram a atender a convites para palestras. Consta que
muitos chegaram mesmo a constituir empresas para melhor organizar a gestão
desse ramo de negócios. Em vez dos R$ 3 mil ou R$ 4 mil a que tinham (têm)
direito como professores, passaram a auferir R$ 50 mil ou mais por hora,
palestreando para públicos empresariais. Há quem afirme que algumas dessas
palestras nem chegam a ser proferidas, servindo apenas como biombos para outros
objetivos, entre os quais não descabe cogitar que se incluam lavagens de
dinheiro.
Concluo com o óbvio. A máquina do Estado, em
geral, e o Judiciário, em particular, parecem estar se transformando em
engrenagens do nosso nascente sistema de castas. Sobre a base da pirâmide,
quero dizer, as castas mais baixas, não há o que acrescentar. Sabemos todos que
sobrevivem na mais cruel degradação, sem saber hoje se terão o que comer
amanhã.
Um comentário:
Interessante! Não gostei do final: "nosso nascente sistema de castas"... Nascente??? Depois de 5 séculos ainda é "nascente"? Depois de tanto tempo, tem que ser velho, ultrapassado, ultrajante.
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