quinta-feira, 2 de julho de 2009

Elementos da Política

Antonio Gramsci

É preciso dizer que os primeiros elementos a ser esquecidos são, justamente, os mais elementares. No entanto, como eles se repetem inúmeras vezes, tornam-se os pilares da política e de qualquer ação coletiva.

O primeiro elemento é que governados e governantes, dirigentes e dirigidos existem realmente. Toda ciência e arte da política se baseia neste fato primordial, irredutível (em determinadas condições gerais). As origens desse fato são um problema à parte, que deve ser estudado separadamente (no mínimo se poderia e se deveria estudar como atenuar e até fazer desaparecer esse fato, mudando certas condições identificáveis como operantes nesse sentido). Entretanto, permanece o fato de que existem dirigentes e dirigidos, governantes e governados. A partir disso, é preciso ver como (estabelecidos certos objetivos) dirigir do modo mais eficaz e, portanto, como preparar da melhor maneira possível os dirigentes (esta é, precisamente, a primeira parte da ciência e da arte da política). Por outro lado, é preciso distinguir as linhas de menor resistência, ou linhas racionais, para obter a obediência de dirigidos e governados. Na formação dos dirigentes, a seguinte premissa é fundamental: queremos que governados e governantes existam sempre ou queremos criar condições para que a necessidade desta divisão desapareça? Partiremos do princípio de que a perpétua divisão do gênero humano é inevitável ou acreditaremos que ela seja apenas um fato histórico que responde a determinadas condições? É preciso, todavia, ter sempre em mente que a divisão entre governantes e governados, embora (em última análise) remonte a uma divisão em grupos sociais, existe, sendo as coisas como são, mesmo dentro do mesmo grupo e mesmo que este grupo seja socialmente homogêneo. De uma certa forma, podemos dizer que esta divisão é uma criação da divisão do trabalho; é um fato técnico. É sobre esta coexistência de motivos que especulam aqueles que, em tudo, vêem apenas "técnica", necessidade "técnica" etc., para não ter de enfrentar o problema fundamental.

Tendo em vista que até no mesmo grupo existe a decisão entre governados e governantes, é preciso fixar alguns princípios irrevogáveis. É justamente neste terreno, em que ocorrem os "erros" mais graves, que se manifestam as incapacidades mais criminosas e mais difíceis de corrigir. Acredita-se que, uma vez aceitos os princípios do próprio grupo, não só a obediência será automática e virá sem nenhuma demonstração de "necessidade" e racionalidade como também será indiscutível (alguns pensam e - o que é pior - agem acreditando que a obediência "virá" sem ser solicitada, sem que o caminho a seguir seja indicado). Assim é difícil extirpar dos dirigentes o "cadornismo" (1), isto é, a convicção de que uma coisa será feita só porque um dirigente acha justo e racional que seja feita: se nada acontece, joga-se a culpa em quem "deveria ter feito" etc. No entanto, o senso comum mostra que a maior parte dos desastres coletivos (políticos) acontece porque danos inúteis não foram evitados e o sacrifício e a vida das pessoas não foram levados em consideração. Todo mundo já ouviu oficiais do "front" contarem como os soldados arriscam a vida quando é necessário e como se rebelam quando se sentem negligenciados. Por exemplo: uma companhia era capaz de jejuar por muitos dias se soubesse que os víveres não podiam chegar por motivo de força maior, mas se amotinaria se uma só refeição não fosse servida por desleixo ou burocracia etc.

Este princípio se estende a todas as ações que exigem sacrifício. Por isso é muito importante, depois de qualquer derrota, investigar, antes de tudo, a responsabilidade dos dirigentes, no sentido estrito. Por exemplo: um "front" é constituído de várias seções e cada seção tem seu dirigente. É possível que os dirigentes se uma seção sejam mais responsabilizados por uma derrota que os dirigentes de uma outra seção, mas é questão de mais ou menos e não de eximir algum dirigente da responsabilidade, jamais.

Uma vez colocado o princípio de que existem dirigidos e dirigentes, governados e governantes, é verdade que os "partidos" têm sido até agora o modo mais adequado de elaborar a capacidade de dirigir e os próprios dirigentes (os "partidos" podem apresentar-se com os mais diversos nomes, incluindo o de antipartido ou de "negação dos partidos". Na realidade, até os chamados "individualistas" são homens de partido, apenas gostariam de ser "chefe de partido" pela graça de Deus ou da imbecilidade de quem os segue).

Desenvolvimento do conceito geral contido na expressão "espírito estatal". Esta expressão tem um significado bem preciso, historicamente determinado. Um problema, porém, se coloca: existe algo semelhante ao que se costuma chamar de "espírito estatal" em todo movimento sério, que não seja a expressão arbitrária de individualismos mais ou menos justificados? Para começar, o "espírito estatal" pressupõe a "continuidade", quer na direção do passado ou da tradição, quer na direção do futuro, isto é, pressupõe que cada ato seja o momento de um processo complexo que já se iniciou e que vai continuar. A responsabilidade por esse processo, de ser ator desse processo, de ser solidário com forças materialmente "desconhecidas", mas que, todavia, são sentidas como operantes e ativas e levadas em conta como se fossem "materiais" e presentes fisicamente, se chama justamente, em certos casos, "espírito estatal". É evidente que uma tal consciência da "duração" não deve ser abstrata e sim concreta, isto é, não deve, em certo sentido, ultrapassar determinados limites. Digamos que os limites mínimos são uma geração precedente e uma geração futura, o que não é dizer pouco, pois as gerações não se contam trinta anos antes e trinta anos depois deste momento, mas organicamente, no sentido histórico, o que ao menos para o passado é fácil de compreender: nos sentimos solidários com os homens que hoje são velhíssimos e representam para nós o "passado" que ainda vive entre nós, que é preciso conhecer, com o qual é preciso acertar as contas, que é um dos elementos do presente e uma das premissas do futuro. E com as crianças, com as gerações que nascem e crescem, por quem somos responsáveis. (Diferente é o "culto" da "tradição", que tem um valor tendencioso, que implica uma escolha e objetivo determinados, ou seja, que está na base de uma ideologia). No entanto, podemos dizer que mesmo se o tão falado "espírito estatal" existe em todo o mundo, é preciso, de vez em quando, combater suas deformações e seus desvios.

"O gesto pelo gesto", a luta pela luta etc. e, especialmente, o individualismo mesquinho e pequeno, que é somente a satisfação caprichosa de impulsos momentâneos etc. (Na realidade, o problema é sempre o "apoliticismo" italiano, que assume essas formas pitorescas e bizarras). O individualismo é apenas apoliticismo animalesco; o sectarismo é apoliticismo e, se observarmos bem, o sectarismo é, na verdade, uma forma de "clientela" pessoal, pois lhe falta o espírito de partido que é o elemento fundamental do "espírito estatal". Demonstrar que o espírito de partido é o elemento fundamental do espírito estatal é uma das teses mais importantes a defender e, vice-versa, o "individualismo" é um elemento de caráter animal, "admirado pelos estranhos" como os atos dos habitantes de um jardim zoológico.
NOTAS
{1} -Referente ao general Luigui Cadorna, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas italianas até a derrota de Caporetto (1917), da qual ele é considerado o principal responsável. Cadornismo representa, então, o autoritarismo e a irresponsabilidade de dirigentes que não consideram importante a adesão de seus comandados e menosprezam o trabalho político necessário para que a importância de uma ação seja compreendida e aceita por eles.

(Extraído de Notas Sobre Maquiavel, in Gramsci: poder, política e partido. Editora Brasiliense. 2a. Edição. São Paulo: 1992. pp 15-19 – Faz parte dos Cadernos do Cárcere, Civilização Brasileira, 2007)

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