Torturadores do Brasil, descansem em paz.
Essa foi a decisão da Justiça suprema. Os que mataram, torturaram, estupraram estão perdoados.
Poderão envelhecer tranquilos, sem sobressaltos, ao lado dos netos. Decisão da Justiça é para ser cumprida. Seria bom, ao menos, que não houvesse o falso argumento de que a lei foi aceita por todos os lados.
Era o ano de 1979. O último general estava chegando ao governo. Ainda ocorreria o Riocentro; os torturadores eram tão poderosos que tentariam explodir estudantes que estavam ouvindo música naquele centro de convenções.
Cinco anos depois, o poder militar estaria ainda forte o suficiente para mobilizar seus áulicos e impedir a aprovação das eleições diretas.
Não havia ambiente para mais nada a não ser aquela lei. Ela traria de volta todos os que tinham ido embora.
Era deixá-los lá ou aceitar aquelas condições.
Por isso, a mesma OAB que, um dia, negociou a lei da Anistia, agora propôs que ela seja revista. Não há contradição. Trinta e um anos depois, os advogados sugeriram uma revisão.
É normal que tivessem dúvidas sobre a validade de uma lei que foi negociada sob um regime de exceção.
A Justiça entendeu que a lei vale. Cumpra-se.
Não seria bom, no entanto, que se subvertesse o sentido do slogan “Anistia ampla, geral e irrestrita”.
Ele nunca significou, no coração de quem o empunhou, o perdão aos torturadores.
Que os historiadores não se confundam com o lema. O regime queria anistiar só alguns dos opositores.
Os opositores queriam que a lei valesse para todos os perseguidos pelo regime. Por isso, se pedia que a anistia fosse “ampla, geral e irrestrita”. As três palavras, meio redundantes, eram usadas para enfatizar o sonho de que ninguém fosse deixado para trás. Aquela foi a lei possível, o passo possível, a negociação possível. Um dos lados ainda tinha armas empunhadas. Não foi uma negociação de iguais.
Também não há comparação possível entre crimes dos dois lados. Em um dos lados estava o Estado — sustentado pelos impostos dos brasileiros, constituído pela Nação brasileira — usando o seu peso e poder de forma espúria.
Do outro, pessoas que, se erraram, foram punidas dolorosamente: presas, torturadas, exiladas e condenadas por cortes marciais. Não foram alcançadas pelo devido processo legal.
Não havia ordem constitucional. Foram, quando muito, defendidos nos retalhos do Direito, nos quais se agarravam os advogados dedicados à causa. O ideal seria que a decisão do STF não consagrasse a ideia injusta de que houve um embate em condições de igualdade e que nenhum dos lados foi punido. Foi uma guerra suja, desproporcional, desequilibrada.
Só um lado pagou o preço do confronto: o mais fraco.
Que a palavra final da Justiça repouse sobre o argumento mais robusto de que é preciso fazer a conciliação nacional. O Brasil tem uma agenda cheia pela frente. Precisa correr atrás dos seus sonhos de país mais justo, mais forte, com crescimento sustentado.
O Brasil tem muitas mazelas.
É convincente o argumento de que os esforços precisam se concentrar na construção do futuro.
Que se deixe, então, o passado ser passado.
Há o argumento de que feridas assim só são curadas quando expostas e tratadas.
É um bom argumento, mas perturbador da ordem que a maioria dos ministros do Supremo preferiu defender. O Brasil sempre escolheu a fuga para a frente, em vez de encarar os erros. O STF foi coerente com esta compulsão nacional de esquecer o inesquecível.
Dois ministros sustentaram a tese de que a tortura é crime hediondo, que não poderia ter sido alcançada pela anistia. Perderam a discussão, mas representaram democraticamente uma corrente discordante do pensamento majoritário.
A maioria indicou ao país o caminho do silêncio sobre os crimes cometidos no aparelho do Estado contra seus cidadãos.
Os ministros vencedores não devem se enganar sobre a natureza da escolha que fizeram: o não julgamento significará o silêncio.
Não haverá informação oferecida de bom grado por quem a escondeu até hoje.
Não se saberá o que se passou.
As famílias não enterrarão seus mortos, os arquivos nacionais não terão os documentos necessários para se contar a história como a história foi. Continuará o pacto do silêncio que faz hoje uma nova geração das Forças Armadas encobrir o que foi feito pela geração anterior.
Continuarão nos quartéis as comemorações de dias fúnebres como o 31 de março como se fossem datas cívicas. Os novos soldados serão ensinados que seus antecessores cumpriram o dever e defenderam a pátria. Assim quis a Justiça. Acate-se.
Alguns ainda vão murmurar que só é possível evitar a repetição de um erro quando o erro é entendido plenamente, mesmo que isso seja um processo doloroso.
Boa tese, mas minoritária na corte.
É tentadora e reconfortante a ideia da concórdia nacional. Que o país feche então esse capítulo e siga seu caminho tirando o melhor dessa decisão do Supremo Tribunal Federal. Há uma série de problemas a enfrentar no Brasil.
Que se aproveite o melhor do tempo presente, que o país se dedique a remover os obstáculos ao fortalecimento da democracia, à redução das desigualdades, ao aumento da eficiência da economia, à proteção ao patrimônio natural, ao combate à perturbadora chaga da corrupção.
Que a decisão do STF não seja pretexto para reescrever o passado, igualando vítimas e algozes.
Que tenha sido tomada em nome do futuro.
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