domingo, 9 de outubro de 2011

Empresas privatizadas detêm 25% do mercado

Vinte anos após o início das privatizações no país, os 20 maiores grupos criados já faturam R$ 300 bilhões, ou 25% das empresas da Bolsa.

Sem as amarras do Estado

Empresas privatizadas já respondem por 25% da receita das companhias de capital aberto

Danielle Nogueira, Liana Melo, Bruno Rosa e Henrique Gomes Batista

Com a venda da Usiminas, em outubro de 1991, o Brasil iniciava a era das privatizações, que mudou a cara da economia do país. Siderúrgicas, petroquímicas, ferrovias, empresas de energia elétrica e telefônicas estatais passaram às mãos da iniciativa privada. O pontapé inicial desse processo, inserido no conjunto de reformas econômicas promovidas pelo então presidente Fernando Collor de Mello, foi o Programa Nacional de Desestatização (PND), tocado pelo BNDES. Por um lado, o programa visava a enxugar o Estado, reduzindo sua intervenção na economia e liberando-o para atuar em áreas como saúde e educação, conforme o receituário mais liberal que dominou o mundo nos anos 90. Por outro, a venda de estatais era usada para abater dívida pública e, de quebra, recuperar a credibilidade do Brasil no exterior, manchada desde a moratória de 1987.

Desde que se livraram das amarras do governo, a maior parte das estatais privatizadas pisou no acelerador e cresceu. Os 20 maiores grupos ou empresas criados a partir das privatizações ou concessões à iniciativa privada nos últimos 20 anos já somavam R$300 bilhões em receita em 2010, ou 25% do faturamento das companhias de capital aberto do país. Em valor de mercado, eles respondem hoje por 20% do total - ou R$513,6 bilhões. Os dados foram levantados pelo GLOBO a partir de informações da consultoria Economatica e excluem empresas do setor financeiro ou seguradoras. Entre as firmas estão Vale, que lidera o ranking, a telefônica Oi e a Braskem, que, embora tenha sido criada em 2002, absorveu praticamente todas as pequenas petroquímicas que atuavam sob batuta estatal.

- O governo havia alavancado a indústria de base, mas não conseguia mais sustentá-la. Era necessário retirar esse ônus do Estado - diz Francisco Anuatti, economista da USP de Ribeirão Preto e autor de artigos sobre o processo de privatização. - A maior parte das empresas se tornou mais competitiva e eficiente.

O PND foi seguido da privatização do Sistema Telebrás e das estatais estaduais. Ao todo, nas três fases, foi transferido à iniciativa privada o controle de 120 empresas, além de participações de outras 15 estatais. Esse processo rendeu, segundo levantamento do BNDES, US$105,9 bilhões aos cofres públicos, dos quais US$87,8 bilhões com receita de venda e US$18,076 bilhões em transferência de dívidas. Além de ajudar a sanear as finanças públicas, a privatização trouxe benefícios aos consumidores. Se antes a espera por uma linha telefônica durava meses, hoje o serviço é executado em questão de dias. Se o carro quebrava após trafegar em estradas esburacadas, hoje ele é poupado do sobe-e-desce nas rodovias privatizadas, embora o custo do pedágio nem sempre agrade aos motoristas.

O esgotamento da capacidade de investimento do Estado e a ineficiência de sua gestão levava a situações insustentáveis, como o prejuízo diário de US$1 milhão da CSN às vésperas de sua privatização, em 1993, e a lentidão com que os trens trafegavam na malha ferroviária nacional. Em uma das ferrovias, o ritmo era tão lento que carros transportados pelas locomotivas eram depenados no trajeto, lembra Elena Landau, que comandou a Diretoria de Privatizações do BNDES entre 1993 e 1994. Diante desse cenário, a União tinha de capitalizar muitas estatais para mantê-las operando e o fantasma de uma nova moratória rondava o Brasil, afastando investidores.

- Inegavelmente, o Collor vem com a privatização no bojo das reformas liberais, uma onda no mundo. A ideia era tornar a economia brasileira mais eficiente, competitiva e moderna. Mas ela toma importância no governo Fernando Henrique no bojo do programa de estabilização. Para que o Plano Real desse certo, era preciso resolver o problema fiscal primeiro - diz Elena.

Um dos casos mais emblemáticos do programa de privatizações é o da Vale. Entre 1943, quando foi criada, e 1997, quando foi privatizada, o lucro líquido médio anual era de US$192 milhões. Entre 1998 e 2010, a média subiu para US$5,5 bilhões, salto de 2.789%. A empresa, que ostenta o título de maior produtora mundial de minério de ferro, se tornou a maior exportadora do país em 2010, contribuindo para o saldo positivo da balança comercial brasileira. E ainda tem ajudado o governo a ampliar a arrecadação: desde que foi privatizada, a média anual de impostos recolhidos é de US$1,8 bilhão, ante US$31 milhões no período pré-privatização (crescimento de 5.805%).

O desempenho da empresa não pode ser creditado exclusivamente à gestão pós-privatização, já que o preço do minério de ferro explodiu nos últimos 20 anos: de US$23 a tonelada em 1991 para uma média de US$128 a tonelada este ano, segundo o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), avanço de 456%. Ainda assim, Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, ressalta o avanço nas práticas de gestão das empresas privatizadas:

- As estatais viviam engessadas gerencialmente, além de serem alvo de ingerência política.

Muito dos avanços da Vale se reflete no aumento do peso do setor de mineração na economia nacional. No início da década, o segmento respondia por 0,24% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de bens e serviços produzidos no país). Em 2008 - último ano em que o IBGE tem dados desagregados das contas nacionais - já era quase o triplo: 0,68%. O cálculo não inclui pagamentos de impostos, o que reduz os PIBs setoriais.

Outros segmentos, como telefonia, petroquímico, energia, telecomunicação e siderurgia, também passaram a ter uma participação mais significa na economia do país. Em 2008, o peso destes setores somados chegou a 7,45% do PIB. Parece pouco, mas é que o cálculo do PIB leva em consideração valores, e não volume. Logo, setores como o de telecomunicação, após privatizados, acabaram não registrando uma expansão comparável com a de outros segmentos, como o de mineração e siderurgia, impactados pela valorização dos preços das commodities. Devido a mudanças na metodologia de cálculo setorial do IBGE, não é possível fazer comparações com a década de 90, início da era das privatizações no país.

Lessa: sem exaltar nem demonizar

Assim como a defesa das privatizações tinha um viés ideológico e um econômico-fiscal, a resistência a elas tinha nuances político-ideológicas e socioeconômicas e manifestava-se em intensas batalhas judiciais nas vésperas dos leilões e protestos de sindicatos e trabalhadores.

- Não podemos exaltar a privatização nem demonizá-la - pontua o ex-presidente do BNDES Carlos Lessa, criticando o modelo adotado no país, porque, muitas vezes, "atendia mais a interesses ideológicos, numa época em que dominava a crença de que a gestão privada era superior à pública".

Lessa, que assumiu o BNDES em 2003 e buscou recuperar o papel do banco no apoio a projetos de desenvolvimento, se diz totalmente contrário à privatização de alguns setores como o de infraestrutura:

- O setor de energia não deveria ser privatizado de jeito nenhum. No caso de um problema na geração ou distribuição, prejudica a dinâmica de toda a sociedade. O setor foi privatizado e o que aconteceu? Temos um serviço precário e um dos maiores preços de energia elétrica do mundo. A Vale é outro exemplo de empresa que deveria ser manejada com critérios nacionais, não privados.

A oposição vinha, muitas vezes, de integrantes da cúpula das empresas. No caso da Vale, a maior resistência era da diretoria, que queria criar um fundo para participar do processo, a exemplo do que foi feito para os empregados. Na época, foi criado o Investvale, que passou a administrar ações da empresas adquiridas com empréstimo do BNDES e ao qual cada funcionário poderia aderir pagando R$1.

- A diretoria queria um fundo só para ela. Foi o maior boicote que eu tive - recorda Elena Landau.

A aversão às privatizações também justificava-se pelo elevado número de trabalhadores que perdiam seus empregos. Além de muitas estatais terem a folha de pagamento inchada, era necessário alcançar o maior preço no leilão de venda. E, para isso, cortar custos era fundamental, fazendo das demissões uma rotina. Para driblar o receio dos trabalhadores, estatais incluídas no PND organizavam excursões a empresas já privatizadas para mostrar os benefícios do novo modelo, lembra o advogado João Nery Campanário, que atua no movimento sindical, auxiliando metalúrgicos de Volta Redonda (RJ) e Minas Gerais.

- A CSN organizou diversas excursões de trabalhadores para a Usiminas, já privatizada, para mostrar os benefícios do sistema. O governo também atuou fortemente com propaganda, usando como exemplo a privatização da Via Dutra que melhorou muito a rodovia, e em uma escala local, reforçando divergências e fissuras dos sindicatos - diz Campanário.

FONTE: O GLOBO

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