sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O mundo em vermelho e azul de Zizek e Jobs:: Maria Cristina Fernandes

Camisa de malha vermelha estampada por um Karl Marx gorducho e em cima do que no Youtube parece um banco de madeira, Slavoj Zizek usa microfone humano para reproduzir seu discurso numa praça arborizada em Wall Street.

"Não se apaixonem por vocês mesmos. É bom estar aqui, mas lembrem-se, os carnavais são baratos. O que importa é o dia seguinte, quando voltamos à vida normal. Não quero que se lembrem destes dias assim: "Meu Deus, como éramos jovens e foi lindo"".

Aos 62 anos, professor de universidades europeias e americanas, palestrante globetrotter e autor de 43 livros publicados em mais de 20 línguas, o esloveno Slavoj Zizek é um filósofo pop.

O alvo de Zizek e de sua plateia eram os bancos da vizinhança que, socorridos pelo fisco americano, não dividem a conta da crise em que a irresponsabilidade financeira jogou o país desde 2008.

Segundo o "The New York Times", o movimento que se espraia pelo país já tem uma cobertura noticiosa comparável à do surgimento de seu congênere de direita, o Tea Party, mas ainda perde para a morte de Steve Jobs, quatro dias antes do discurso de Zizek.

Nenhum fato da vida do fundador da Apple foi tão lembrado naqueles dias em que Jobs foi colocado no panteão de gênios da humanidade quanto o discurso que proferiu em 2005 na Universidade de Stanford. Sua plateia era de concluintes da universidade mais prestigiada do Vale do Silício, onde Jobs fez fama e fortuna.

Confrontados pelo Youtube, os discursos de Zizek e Jobs, seis anos mais novo que o filósofo esloveno, revelam mais do que mentalidades em conflito.

O fundador da Apple fez um discurso centrado em sua própria história de vida para dizer aos estudantes que só deviam acreditar neles mesmos. Recheado por histórias de sua adoção até as brigas societárias na Apple, o discurso é uma ode ao individualismo.

Na receita do que deveriam fazer para vencer na vida, seus estudantes foram presenteados com tiradas como: "Seu tempo é limitado, então não o gaste vivendo a vida de um outro alguém"; "Não deixe que o barulho da opinião dos outros cale sua própria voz interior"; "Tenha coragem de ouvir seu próprio coração e sua intuição".

A mensagem do gênio da era digital é coerente com os produtos que criou. Umberto Eco um dia disse que, com a Apple, a informática tinha deixado de ser instrumento para se transformar num meio de encantamento.

E o encanto aumenta a cada lançamento, ainda que a diferença de um produto para outro seja o acréscimo de um megapixel ou o decréscimo de milímetros na espessura. Cada pequeno detalhe é aplaudido como mais uma grande conquista de um mundo de ícones coloridos ao alcance de um toque.

Junto com o fetichismo, a era digital também possibilitou a convocação de manifestações como as que sacudiram o mundo árabe, passaram pela Europa e espraiam-se pelos Estados Unidos.

O filósofo midiático também é filho desta era digital, o que não lhe impede de fazer perguntas que incomodam, a começar de si mesmo, que, a cada frase de seu discurso em Wall Street, automaticamente puxava a camiseta para baixo.

Naquele domingo em que foi a atração do movimento nova-iorquino, Slavoj Zizek perguntou aos manifestantes por que a tecnologia havia rompido quase todas as fronteiras do possível enquanto na política quase tudo era considerado impossível, a começar do aumento do imposto dos ricos para melhorar a saúde pública.

A audiência do filósofo performático era muito diferente daquela de Stanford. Muitos dos estudantes ali presentes, de acordo com os relatos da imprensa, não conseguem emprego para pagar o crédito estudantil que lhes permitiu frequentar universidade.

Vítima da ditadura iugoslava de Tito, Zizek usou suas frases de efeito para dizer que o comunismo falhou, mas o problema dos bens comuns permanece: "Hoje os comunistas são os capitalistas mais eficientes e implacáveis. Na China de hoje, temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico do que o vosso capitalismo americano. Mas ele não precisa de democracia. O que significa que, quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou".

O divórcio da era digital genialmente revolucionada por Jobs e a utopia de Zizek está resumida na história contada pelo filósofo esloveno na praça. Um alemão oriental foi exilado na Sibéria e combinou com seus amigos que ao receberem cartas suas observassem a cor da tinta. Se azul, contaria a verdade. Se vermelha, seria falsa. A primeira carta veio em azul: "Tudo é maravilhoso aqui, as lojas estão cheias de boa comida, os cinemas exibem bons filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos, a única coisa que não se consegue comprar é tinta vermelha".

Zizek contou essa história para dizer que, sem tinta vermelha, o mundo se mostrava incapaz de articular uma linguagem para expressar a ausência de liberdade e encontrar alternativas a um sistema em crise.

A era digital abre todas as possibilidades e nenhuma. Faz do individualismo a alma da globalização. É imaginativa, mas escreve em azul.

É pela internet que está sendo convocada para amanhã o que se imagina que venha a ser "a maior manifestação da história". Pretende mobilizar milhões em 79 países e dar seguimento à onda de mobilizações que começou nos países árabes, prosseguiu pela Europa e agora se espraia pelos Estados Unidos.

Já tem adeptos em 34 cidades brasileiras. Muitos deles participaram dos protestos de quarta-feira. No Brasil, a manifestação é ainda mais difusa do que no resto do mundo que pelo menos tem o desemprego crescente como amálgama.

Um dos grupos tupiniquins mais ativos é o Anonymous que, no 12 de outubro, declarou: "A corrupção é o principal motivo de as coisas estarem erradas". De seu banquinho nova-iorquino, Slovej usou mais uma de suas frases de efeito para mandar o recado: "O problema não é a corrupção ou a ganância, o problema é o sistema".

Maria Cristina Fernandes é editora de Política.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Um comentário:

Renata Gomes disse...

As manifestações brasileiras "contra a corrupção" têm pouco ou nada a ver com as "primaveras" orientais, européias ou americanas. A nossa, ao contrário das outras, tem agenda clara, escondida por baixo de vassouras: um entendimento de que o grande e único problema do Brasil é a corrupção, que ligam ao PT (logo, tirando-se o PT do governo, tudo se resolve). Esse movimento, embora conte também com pessoas bem intencionadas, não é nada apartidário, é um neo-janismo, neo-cansei, que não encontra a mesma legitimidade dos demais, que estão, todos, questionando o sistema como um todo, e não a corrupção "de alguns".