quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A terra é da Santa:: Marcelo Cerqueira

O deputado andava por toda a Câmara, ia pra lá, ia pra cá, percorria as salas das Comissões e o Plenário, atravessava o Túnel do Tempo para ir ao Senado, voltava ao seu gabinete no Serra Pelada: enfim, incansável. Pensava-se que fosse peripatético (como Sócrates). Mas não. Era de profissão carteiro em Aracaju. Tinha que andar.

E muito dedicado às coisas de sua terra.

Deu-se que no fim do ano, justo no recesso, arregimentou Caravana para enfrentar um problema cabeludo de condenação em primeira instância de posseiros de Santana dos Frades.

Não lhe foi difícil conseguir adesão de colegas da região: Alagoas, Paraíba, Recife e até um de Minas Gerais. Mas o deputado queria justamente o colega do Rio. Que arrepiou carreira:

Tem paciência, Jackson. Não há falta de bons advogados na sua terra.

Não falta, respondeu. Mas vindo um de fora, de nome, vai fazer diferença. O caso é seriíssimo e os coitados estão presos.

Fizeram o quê?

Não vê que são posseiros de uma “data de terras” lá pras bandas de Propriá onde vivem da venda do coqueiral nativo e da lavoura de subsistência...

E?

É que as terras em volta foram compradas por uma empresa e a posse ficou como se fosse uma ilha no meio delas. Os posseiros não quiseram vender sua terrinha. Estão lá desde tempos imemoriais, descendentes dos índios tupinambás. As terras foram, ainda no Reinado, doadas à Santana dos Frades pelo barão dono delas após alcançar uma graça que à Santa pediu. E fez a “escritura” de doação em livro próprio da Igreja, como de uso naqueles tempos. Então, o grupo que saiu nos carros de boi para vender a produção de coco foi preso pela polícia, que os acusou de terem roubado os cocos da fazenda lá da empresa.

E?

Presos, foram levados à capital, processados e condenados pelo juiz local.

E?

Tá certo isso?

Não, não tá. E?

O advogado apelou para o Tribunal, que entrou em recesso e só vai a julgamento ano que vem.

E?

É preciso, sei lá, um habeas corpus, uma medida pra soltá-los logo, antes do Natal.

Peraí, Fulano. A história convence.

E?

O que não convence é que com tanto advogado bom lá eu tenha que ir justo ao início do recesso. Tenho compromissos, pó!

Sei, mas sua ida é imprescindível. (E tirou o coelho da cartola.) Sou portador de uma carta do bispo de Propriá, que te conhece e que já se valeu dos teus serviços quando a Justiça Militar no Recife processou os redatores do “A Defesa”.

(Realmente, D. José Brandão de Castro, santo homem, recusou a “sugestão” da Polícia Federal de intervir no jornal da Diocese “A Defesa”, useira e veseira em criticar as autoridades inventando prisões e desmandos do governo militar. Modesto estava doente e sobrou pra quem?)

Rendeu-se o pobre. E lá se foi para a agradável e acolhedora Aracaju e de lá de carro até um ponto da cidade e dali a pé pelo areal até o povoado. D. Brandão já lá estava rodeado pelo povo.

Após as saudações de estilo, o forâneo entabulou conversa com os lavradores. O que parecia ser o líder, traços acentuados de índio, arengou - Não podem fazer isso, moço: a terra é da Santa!

Resolvido.

Com aquela argumentação definitiva (A Terra é da Santa!) e o livro original da doação, intacto apesar dos anos, o habeas corpus foi recebido pelo presidente do Tribunal no copiar de sua casa e lá mesmo deferido. Chamado, o escrivão lavrou o termo, que, novamente assinado pelo presidente, foi levado em farrancho pela Caravana ao presídio e libertados os presos. Aleluia!

Era Natal.

Marcelo Cerqueira, ex-deputado federal, advogado e escritor.

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