Ainda não é oficial, mas o processo em curso que nos embala, nessa marcha batida rumo aos grandes do mundo, animada pelas fanfarras dos nossos êxitos econômicos e sociais, já conta com um nome à espera de consagração na pia batismal: desenvolvimentismo. Desenvolvimentismo assim sem mais, sem a pesada qualificação de tempos de antanho, que o associou à fórmula, hoje cediça, do nacional-popular, criada, por volta das décadas de 1950-60, a partir de uma de suas costelas, vindo a povoar a imaginação da esquerda brasileira da época.
Sob esse nome, com raízes na tradição republicana brasileira, especialmente de suas florações autoritárias - cite-se, para encurtar razões, apenas o regime militar -, talvez se pretenda deixar para trás o tempo dominado pela contingência, como foi aquele em que o PT iniciou o seu ciclo governamental, confrontado com uma realidade que não suportava o seu programa e as ideias-força que o tinham trazido ao primeiro plano da cena política brasileira. Diante da pressão coercível dos fatos, como é sabido, o PT adaptou-se às circunstâncias, dando continuidade ao cerne da política do seu antecessor a ponto de serem pouco distinguíveis as diferenças entre eles em matéria de política econômica.
A crise política e institucional de 2005, deflagrada pelos episódios nada republicanos vindos à tona na CPI dita do mensalão, se não importou mudanças nessa dimensão, em termos de orientação política levou a um movimento defensivo por parte do governo do PT, reagindo a uma contingência ameaçadora à sua reprodução, já às portas do processo sucessório de 2006, que trouxe consigo uma verdadeira mutação na forma de esse partido se pôr no mundo. A partir daí, declina da interpretação que lhe serviu de viga mestra para a fixação do discurso com que iniciou a sua escalada vitoriosa nas eleições e na conquista da direção de importantes movimentos sociais, que identificou na ideologia do nacional-desenvolvimentismo os suportes para uma política populista que teria atrelado o sindicalismo ao Estado e à coalizão pluriclassista que o dirigia. Produzida essa metamorfose - categoria plenamente admitida no léxico partidário, enunciada várias vezes por sua principal liderança -, deu início a uma deriva rumo ao encontro com a tradição republicana brasileira, incluídas todas as suas dicções, a de Getúlio Vargas, a de Juscelino Kubitschek e, inclusive, a do regime militar, nesse caso, sobretudo a do governo Geisel.
Exemplar desse movimento a mudança de política quanto ao sindicalismo - ponto de referência estratégico quanto à sua formação -, quando, nesse mesmo ano aziago de 2005, o PT abriu mão do seu programa de reforma sindical, confirmado num fórum nacional realizado no ano anterior, abdicando dos seus princípios em favor da pluralidade sindical e contrários à contribuição sindical. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) cede lugar à Força Sindical, cuja proximidade quanto à tradição republicana se fazia garantir com a entrega do Ministério do Trabalho ao presidente do PDT, partido fundado por Leonel Brizola, um cultor da herança de Vargas. Um dos resultados dessa recomposição foi a admissão das centrais sindicais como figuras institucionalizadas do sindicalismo, passando a ser contempladas com recursos da contribuição sindical, fortalecendo-se os vértices em detrimento das bases da vida associativa dos trabalhadores.
Tal guinada em termos de orientação não foi acompanhada de razões que a justificassem, mas o fato é que, pragmaticamente, tangido pelas circunstâncias, o PT se vai descobrir instalado num território ideal antípoda ao de sua formação. O processo de modernização, bête noire de ícones intelectuais de suas primeiras horas, como Raimundo Faoro, é incorporado à sua política econômica, emprestando-se ao tema do desenvolvimento das forças produtivas materiais uma centralidade imprevista, até mesmo pela razão de esse partido ter vindo à luz com a incorporação de setores influentes da catolicidade de esquerda, refratárias doutrinariamente a construções desse tipo. Seu panteão se renova com a inclusão em lugar de honra de Celso Furtado, e sua própria interpretação da História republicana é revista, instituindo-se pontes de comunicação entre Vargas e Lula, vistos como lideranças maiores na adoção de políticas sociais inclusivas. Insinua-se, então, se bem que veladamente, o diagnóstico de que na origem dos nossos males estaria mais a falta de capitalismo do que os efeitos da sua presença.
Expandir o capitalismo brasileiro, projetá-lo além-fronteiras, torna-se o projeto in pectore do segundo mandato de Lula, consagrando-se sans phrase no governo de Dilma Rousseff. Ressurgências do passado costumam assombrar os vivos, trazendo de volta tempos mal vividos, enredos que não se completaram, espectros que saem das sombras a fim de nos cobrar ações para que, afinal, possam repousar em paz, como na tragédia clássica de Hamlet, na bela leitura de Derrida (Espectros de Marx, Relume Dumará, 1994). Espectros que nos rondam, quando os vivos não enterram bem seus mortos, e se investem desajeitados dos papéis que tão bem couberam neles em farsas que são pantomimas do que eles viveram, nas poderosas imagens de Marx de O Dezoito Brumário.
O desenvolvimentismo que ameaça retornar com galas oficiais que venha, então, com suas roupas próprias, no estilo prosaico do agronegócio, do empreendedorismo e da associação crescente com as empresas multinacionais. Ele não conhece a face amedrontadora de um inimigo fatal nem a necessidade heroica de mobilizar a Nação para combatê-lo. Seu mundo não é o da encarniçada luta política sem quartel, mas o do cálculo da racionalização de mandarins, que, como na China, tentam tecer por cima o rumo dos nossos destinos. Quanto aos espectros, basta abrir uma janela que eles se dissipam no ar.
Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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