A inviabilização do Rede precipitou a guinada pragmática
Observadores minimamente céticos da realidade política brasileira eram, até pouco tempo atrás, assaltados por certo desalento (ou mesmo incredulidade) ao escutar Marina Silva falar sobre as possibilidades do afazer político no Brasil. Não em função de suas posições na política ambiental - embora também essas sejam sujeitas a questionamentos. Afinal, como candidata "verde", seria estranho que Marina não se opusesse à situação reinante, apresentando alternativas ecologicamente mais arrojadas e menos sujeitas às considerações de curto prazo do desenvolvimento industrial e - particularmente em nosso caso - agrícola.
O ceticismo maior se voltava às posições manifestas em relação ao modo tradicional de fazer política no Brasil e às possibilidades de evitá-lo. Afinal, como governar em minoria num Congresso dominado por partidos de adesão, dos quais o PMDB é apenas a expressão mais acabada - mas não necessariamente a pior? Questionada sobre isto, Marina frequentemente tergiversava, sem dar respostas claras a um questionamento incômodo, já que colocava em xeque um aspecto crucial de sua identidade: a rejeição à forma antirrepublicana pela qual se obtêm maiorias parlamentares - marca de todos os governos brasileiros na atual quadra democrática.
Em seus primórdios, o partido originário de Marina Silva, o PT, vociferava contra esse modo de fazer política, mas propunha uma alternativa: a mobilização da sociedade e o estabelecimento de mecanismos de democracia participativa e direta que permitiriam contornar o conservadorismo e a venalidade das elites parlamentares. O problema é que, como se sabe muito bem, essa alternativa não deu certo. Embora experimentos participativos tenham contribuído para arejar o sistema aqui ou ali, não alteraram nada de fundamental nas bases do presidencialismo de coalizão brasileiro, nos três níveis de governo em que o PT galgou posições de mando. Mais do que isto, o partido acabou por render-se de forma inconteste à política pragmática de alianças, no Congresso ou nas eleições, alinhando-se a agremiações e lideranças que outrora eram verdadeiros anátemas.
Tão grande se tornou a distância entre a posição petista originária quanto às alianças e aquela posteriormente assumida, que a narrativa vulgar sobre a política brasileira fez crer que figuras como Sarney, Renan, Barbalho e Maluf jamais haviam se aliado a quaisquer outros, principalmente entre os adversários do PT - embora saibamos que foi exatamente o contrário. De qualquer forma, Marina Silva, uma vez fora do PT, parecia retomar esse aspecto do petismo originário. Nisso, repetia o que já fizera o PSOL, inicialmente pela voz iracunda de Heloísa Helena. Contudo, nem o manso tom pessoal de Marina, nem suas posições noutros âmbitos - como na política econômica - suscitavam a imagem carbonária que mantém o PSOL firmemente no gueto.
Assim, o projeto do Rede, capitaneado por Marina, parecia combinar o que de mais moderno e arejado poderia haver: uma estratégia política republicana e participativa; uma gestão econômica liberal (eis aí o tripé), porém socialmente orientada; um ambientalismo sustentável. É bem verdade que Marina tem posições pessoais, ditadas por suas convicções religiosas, que certamente contraditam as crenças de muitos dos "sonháticos" e liberais de seu Rede. Porém, como ela não defende um assalto religioso ao Estado laico, talvez seja possível separar as duas coisas e ficar apenas com a parte moderna e arejada.
Se fosse para ficar apenas na oposição, os posicionamentos mais arrojados poderiam ser mantidos inflexíveis por tempo indeterminado, o Rede assumindo a condição de grilo falante da nação - como o próprio PT já fizera outrora. E se o partido virasse governo? Do ponto de vista econômico, tendo em vista os indigentes resultados da atual gestão, talvez as posições do Rede sejam até mais realistas. Do ponto de vista ambiental, é algo a se ver. Contudo... e do ponto de vista politico...?
A inviabilização legal do novo partido precipitou as coisas. Uma inflexão politicamente pragmática, que poderia esperar alguns anos, teve de ser drasticamente antecipada. Como nenhum ganho adviria da filiação apressada a uma das novas legendas de adesão (já perdas reputacionais, certamente), Marina tinha diante de si duas alternativas: o poço de ressentimentos antipetistas do PPS de Roberto Freire, ou o (lulista até ontem) PSB de Eduardo Campos. No primeiro caso, sua candidatura presidencial era certa; no segundo, uma remota possibilidade. Se contasse apenas sua ambição pessoal, a primeira opção faria mais sentido; como construção de um polo alternativo, a segunda é mais forte.
Só que a construção do polo alternativo passa justamente pela formação de alianças partidárias, algo em que o PSB de Campos tem-se esmerado, mas que Marina vinha recusando (ou, ao menos, evitando abordar). É importante destacar que a negativa referia-se às alianças com partidos, não com setores da sociedade civil - como o empresariado, com o qual Marina vem, desde a campanha de 2010, estabelecendo vínculos bastante estreitos. O primeiro passo foi dado com a entrada no PSB; o segundo deverá ocorrer com a ampliação da coligação eleitoral. Isto não é algo que se possa negligenciar, sobretudo considerando-se a brutal disparidade de tempo hoje disponível para o PSB e as prováveis alianças governista e tucana. No cenário mais crível (ou otimista para o PSB, com o apoio do PPS) Campos/Marina teriam apenas 2 minutos, contra mais de 12 da atual presidenta e mais de quatro do PSDB.
Isto com certeza faz diferença, embora nas eleições de 2010 Marina já tenha mostrado que com pouco tempo às vezes se produz um efeito mais do que proporcional. Se tudo der certo e a dupla se sagrar vitoriosa, viria o terceiro passo: a construção da coalizão governamental. Até onde se poderia ir com isso, sem lançar por terra justamente o que lhes diferencia ou sem causar uma fissura no interior da atual aliança? Quantos Caiados ainda serão lançados ao mar? Quantos embarcarão?
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Fonte: Valor Econômico
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