• Para Fausto Matto Grosso, a sociedade política se afastou enormemente da sociedade civil, que deveria ser a fonte da sua representatividade
Cristina Medeiros – Correio do Estado (MS)
Diante da indiscutível crise que o mundo ocidental vivencia na efetivação de uma (real) democracia representativa, quais medidas sociais, políticas e jurídicas podem ser implementadas com o objetivo de que a desejada confiança do povo seja alcançada, uma nova governança seja criada e a parceria entre governo e sociedade se estabeleça? Estas e outras questões fazem parte das reflexões de um grupo de pessoas em Campo Grande, que formou o Movimento por uma Cidade Democrática. Dele faz parte o professor aposentado e engenheiro civil Fausto Matto Grosso, que nesta entrevista ao Correio do Estado fala, entre outras coisas, da necessidade de refundação da política em novas bases, de maneira a que se recupere a confiança social.
• O senhor faz parte de uma plataforma nacional intitulada Cidade Governança Democrática. Poderia explicar de que se trata e por que sua adesão?
Francisco Fausto Matto Grosso Pereira - Na atualidade, há uma grave crise na maneira de fazer política e de fazer governo. Os políticos, os partidos e os governantes estão profundamente desacreditados. Há uma profunda crise de representação. A sociedade política se afastou enormemente da sociedade civil, que deveria ser a fonte da sua representatividade. Há que se reconstruir essa relação da política com a sociedade, fazer a política e os governos cumprirem suas finalidades públicas, pautarem-se por princípios cívicos e republicanos, comporem-se de quadros representativos e capazes, serem transparentes e confiáveis, para que se recupere a confiança social, base para a necessária parceria entre governo e sociedade. Essa é a ideia central, é necessário construir novas regras, nova ética, novas relações, em outras palavras, nova governança.
Essa nova governança, democrática por sua natureza, representaria a refundação da política em novas bases, de maneira a que se recupere a confiança social. Esta é a resposta para a crise que vivemos, é a única possibilidade de se criar a sinergia necessária, entre todas as forças vivas da sociedade, para enfrentar os enormes desafios existentes nas cidades. É nisso que acredito, por isso estou empenhado na construção coletiva dessa nova política.
• O senhor e um grupo de pessoas criaram o “Movimento por uma cidade democrática”, que se propõe desenvolver ações contra a degradação política em Campo Grande. Quem são estas pessoas e quais as principais propostas de vocês para que Campo Grande se torne uma cidade melhor?
Somos um grupo de pessoas, formadoras de opinião, com certa experiência de militância política, na boa política, que já exerceram mandatos ou funções públicas, das mais diversas filiações partidárias, ou mesmo sem nenhuma vinculação a partidos, que se reúne para entender as razões mais profundas da crise ética que tem marcado a nossa política e articular ações concretas de denúncia e, ao mesmo tempo, apontar saídas para a superação da velha política. São pessoas das mais variadas formações profissionais, que produzem artigos de opinião publicados em vários jornais, que se pronunciam em entrevistas de rádio e nas mídias sociais, que proferem palestras, sempre defendendo a política como atividade imprescindível na democracia, mas que se encontra profundamente degradada. Nossa proposta é de provocar a sociedade para o desafio de mudar a política a partir de uma visão sócio-centrada e não estado-centrada, ou seja, de subordinar a política e os governos à sociedade e não ter a sociedade tutelada pelos governos e pela política.
• Esta degradação política a que o senhor se refere é algo detectado a partir de que?
É só abrir os jornais ou ouvir os noticiários para perceber esse apodrecimento da política tradicional. Ela perdeu referências programáticas e ideológicas, se transformou em negócios privados escabrosos. Os assuntos da política passaram a ser assuntos típicos de páginas policiais. É um descalabro. Mas, felizmente, estas coisas começam a aparecer, a serem trazidas à luz do dia, e saúda-se a Operação Lava Jato, a Lama Asfáltica e a Coffee Break que estão dando nome aos bois, inaugurando um novo clima de esperança de que a lei valha para todos e, ninguém, por mais poderoso que seja, pode ficar acima dela. Isso nunca vimos acontecer antes.
• Qual a posição do grupo em relação a acontecimentos como a Lei da Mordaça e a Operação Coffee Break?
Nosso grupo é um ponto de encontro para reflexão e organização de ações. Nossa contribuição mais específica, pelas características da nossa composição, é a de pensar os problemas para além de suas manifestações aparentes, buscando as raízes mais profundas, normalmente ocultas. Nesses temas que você cita, posicionamo-nos em artigos, entrevistas e estivemos presentes em manifestações públicas em caráter coletivo ou individual e sempre procurando somar com outras iniciativas existentes na sociedade. No caso da Lei da Mordaça, por exemplo, elaboramos um manifesto pelo veto da lei, envolvendo centenas de pessoas, fomos ao Prefeito pedir o veto, fomos à Câmara pedir a manutenção do veto ao projeto, articulamo-nos com outras instituições, a exemplo da OAB, que nos convidou para contraditar com os propositores dessa malfadada lei na reunião do seu Conselho. Tudo isso somado a palestras, entrevistas, debates onde tivemos presença ativa.
• Podemos dizer que o atual papel político na transformação da cidade de Campo Grande – e das cidades em geral – está equivocado num tempo de evolução tecnológica e redes sociais?
Sem dúvida. O mundo mudou profundamente e quem continuar pensado com a cabeça formada nos contextos que foram superados, morreu intelectualmente, embora muitos não percebam isso. A cidadania hoje interage horizontalmente nas redes de informações e comunicações e não se sente representada nas estruturas verticalizadas, articula ações participativas que colocam em xeque o sistema tradicional de poder. Ninguém mais precisa de intermediação para cobrar, criticar, propor coisas diferentes e inclusive, tem criado redes de cooperação para resolver problemas. O nível de participação aumentou muito, nunca se discutiu tanta política, e nessa efervescência está a energia para o surgimento de uma nova política, para esse mundo novo que vai se afirmando.
• O senhor concorda que para se conseguir maior participação na vida política e pública da cidade é necessário que o cidadão sinta-se pertencente àquela cidade? O que fazer?
Isso é absolutamente verdadeiro. Mas, afinal, o que é a cidade, genérica e abstratamente? É aquilo que está na cabeça do prefeito, ou do governador, ou de cada vereador ou dos candidatos das próximas eleições?
Esse sentimento de pertencimento só poderá ser verdadeiro se a cidadania fizer parte da definição do que se pretende para a cidade, ou seja, da construção de um projeto de futuro compartilhado por todos. Aí sim, cada um pode vir a assumir uma postura de cumplicidade, de corresponsabilidade com essa construção coletiva, saber qual é o espaço do seu interesse legítimo e qual o papel que pode cumprir.
• Como a sociedade civil pode colaborar na transformação real de sua cidade?
Nós estaremos vivendo este ano uma boa oportunidade para essa intervenção, por conta do processo eleitoral. A sociedade civil pode atuar melhorando a qualidade da representação política, convocando quadros para essa missão, repudiando os políticos que representam apenas seus próprios interesse e projetos pessoais. Outro desafio é o de fortalecer a articulação das diversas instituições existentes para uma interlocução organizada com os futuros candidatos, cobrando-lhes compromissos de novas relações entre a futura administração e a sociedade, cobrando-lhes programas de governo consistentes, comprometendo-os com a elaboração de planos de longo prazo compartilhados com a sociedade, cobrando-lhes fichas limpas, transparência, qualidade de gestão e posturas republicanas.
• Como seria o modelo ideal de gestão pública?
Se é certa a constatação de que forma tradicional de governar está em crise, que a administração pública perdeu a sua capacidade de financiamento, que os problemas se avolumam diante de um estado que já bateu no teto da capacidade contributiva da sociedade através dos impostos, que as necessidades são crescentes e evoluem em um ritmo maior do que permite o crescimento da economia, não é trivial apontar um modelo milagroso para a saída do impasse. O novo não tem receita pronta e acabada. O fato é que não basta ser bom gerente, ou honesto, para dar conta dos desafios das novas administrações. Isso é pouco. Há necessidade de inovação na maneira de governar.
Hoje, o modelito que norteia a disputa política é de quem é o mais competente para fazer a gestão de infraestrutura e serviços, quem é capaz de conseguir mais recursos para atender as necessidades da população, mas o governante é o árbitro dessas necessidades. A população é tratada como clientela, e o governante é o gerente, trazendo para a administração pública o modelo da gestão privada.
A grande questão é que não há competência que dê conta da crise estrutural e conjuntural de financiamento da máquina pública. Os números são contundentes quando se analisa o gap entre os recursos e as necessidades. É fora de dúvida que qualquer governo tem que ser honesto e ter competência gerencial. Mas isso não é suficiente. A realidade é que não é o governo, a prefeitura que constrói a cidade, ela é fruto da atividade produtiva, social, cultural e política dos cidadãos. O grande desafio é criar a sinergia entre todas as energias e recursos existentes na sociedade - econômicos, de conhecimento, de experiência de organização, de articulação social, de trabalho voluntário, entre outros. Essa é a função mais desafiadora a ser exercida pelo administrador público, ou seja, a da articulação da sociedade. Isso significa construir uma nova relação entre governo e sociedade, focada no que deve ser a razão da ação pública: o desenvolvimento humano, o que contempla equidade social, eficiência econômica, sustentabilidade ambiente e convivência democrática.
• A gestão descentralizada, aplicada em importantes cidades pelo mundo, é o melhor caminho, mesmo num país como o Brasil, onde em muitas cidades é a lei do mais forte que ainda manda?
A descentralização é uma regra de ouro para a gestão pública, mas tem que ser combinada com a articulação e a integração formando um sistema coerente. Tecnicamente tem que se repensar esses conceitos e seus mecanismos no contexto da sociedade em rede. Cada escola, cada unidade de saúde, cada local de atendimento das pessoas, cada ponto de ônibus pode ser pensado como nó da rede integrada, onde o cidadão possa falar direto, em tempo real, com a administração pública. Quanto à lei do mais forte, não se pode ser ingênuo, ela é a regra cruel do sistema atual, mas pode ser enfrentada. O caminho é o da política, da boa política de juntar forças interessadas nas mudanças, o de criar uma força social mais coesa e democrática que possa enfrentar a lei do mais forte.
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Perfil
Francisco Fausto Matto Grosso Pereira, Engenheiro Civil pela UFPR, Mestre em Desenvolvimento Local pela UCDB, professor titular da UFMS, aposentado. Foi vereador em Campo Grande pelo PCB, hoje PPS, entre 1983 e 1988. Foi Secretário de Planejamento do Governo de Mato Grosso do Sul, Diretor de Desenvolvimento Regional da Secretaria de Desenvolvimento do Centro Oeste/Ministério da Integração Nacional. Atualmente é pesquisador associado do Grupo de Estudo das Transformações Organizacionais – GETO/UFMS e consultor em planejamento e desenvolvimento regional.
É membro da Direção Nacional do PPS e da Diretoria Executiva da Fundação Astrojildo Pereira
Nascido em 02 de janeiro de 1949
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