sábado, 3 de setembro de 2016

Após impeachment, PT tirou cães furiosos da cena e escalou moderados – Demétrio Magnoli

- Folha de S. Paulo

Depois da cisão, a conciliação. Concluída a votação do impeachment, o PT tirou seus cães furiosos da cena e, no lugar deles, escalou vozes moderadas. Kátia Abreu, uma liberal de estimação, apelou ao sentimento de seus pares; um sereno Jorge Viana invocou a necessidade de preservar "o dia de amanhã aqui no Senado". No fim, graças à notável criatividade jurídica de Ricardo Lewandowski, que propiciou a mudança do artigo 52 da Constituição pela vontade minoritária de um terço dos senadores, obtiveram a manutenção dos direitos políticos de Dilma Rousseff. Ali, plantou-se a mudinha de uma espécie singular de "união nacional".


"A política da conciliação é um antídoto contra o levante, um relaxamento da tensão entre a vida como ela é e a vida como deve ser", escreveu James David Barber. A "vida como deve ser": o retorno à velha ordem, abalada nessa quadra de crise pelo impeachment e pelos processos contra políticos e empresários. A política da conciliação, explicou Barber, "é um romance de restauração": no caso do Brasil, a recuperação do privilégio da elite política de submeter a coisa pública às redes de interesses partidários e privados. A absolvição parcial de Dilma descortina um caminho promissor: perdão e redenção.

"Não poderíamos fazer um acordo com os nossos algozes", disfarçou Humberto Costa, como se pudesse permanecer em segredo o pacto costurado na residência de Renan Calheiros e avalizado por Lewandowski. Do ponto de vista do PT, cisão e conciliação funcionam como polos complementares de uma mesma estratégia. A página do golpe não foi virada, mas passa a conviver com um novo texto. Quem liga para a coerência? A denúncia do "golpe parlamentar", cantada por Dilma, ecoada por "intelectuais orgânicos" e artistas, continuará a desempenhar as funções subsidiárias de reunir a base militante e oferecer um discurso eleitoral. Mas será devidamente subordinada ao imperativo da conciliação, que promete reerguer uma ponte bombardeada. Lula precisa de perdão e de redenção.

O senador Álvaro Dias enxergou na manobra um "jeitinho brasileiro" destinado a "proteger a poderosa Dilma". Mas Dilma funciona no episódio como mero precedente: a chance de fraudar as leis à sombra do STF. Se um "jeitinho" vale em benefício dela, por que expedientes similares não valeriam para Eduardo Cunha e muitos outros, presos na teia das investigações judiciais? Daqui em diante, ao menos em tese, a perda do mandato seria apenas um ponto de partida rumo à redenção eleitoral. Os senadores da maioria governista que votaram com o PT não protegiam Dilma, mas compravam um seguro contra acidentes. O bravo Calheiros, em particular, um personagem arqueado sob o peso de tantos processos, operou em defesa própria, enviando uma mensagem ao governo Temer. Ele está dizendo que a desordem foi longe demais: é tempo de construir uma ampla coalizão política contra a Lava Jato.

No Brasil oficial, esse mundo assolado pelo medo, angustiado pelas incertezas, avança a "pacificação" invocada por Temer em seu discurso de posse. Se a impunidade absoluta está morta, que tal inventar o perdão? A reunificação, ainda uma planta tenra, já parece capaz de dar frutos. O PSDB e o DEM rejeitaram o santo pacto em plenário para, na sequência, recuarem da efêmera intenção de contestá-lo no STF. "A questão essencial está resolvida", decretou Aécio Neves, como quem desenha um ponto final –apenas para, sob pressão da opinião pública, recuar do recuo no dia seguinte, apresentando o recurso judicial.

O impeachment de Dilma e a patética posse de Temer assinalam uma crise maior. Estilhaça-se a "Nova República" proclamada no discurso de posse de Tancredo Neves, lido por José Sarney há 31 anos. O ensaio de conciliação é uma tentativa de colar seus cacos, salvando "o dia de amanhã" de uma elite política acossada.
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Demétrio Magnoli é sociólogo

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