Violência na política mostra que democracia não superou autoritarismo, afirma Adorno
Joelmir Tavares | Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - O sociólogo Sérgio Adorno diz que a onda de violência na política —simbolizada pela morte da vereadora Marielle Franco e pelos tiros na caravana do ex-presidente Lula— indica que a democracia brasileira precisa completar um ciclo de consolidação.
Para o professor, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o país tem que se distanciar do autoritarismo para que o diálogo substitua o poder conquistado por intermédio da força.
Adorno afirma que a polarização fermenta o radicalismo, que deve ser combatido, sob pena de sair do controle. “O apedrejador de hoje pode ser o apedrejado de amanhã”, diz ele, estudioso de direitos humanos e conflitos sociais.
• Folha - Há uma escalada de violência no meio político?
Sérgio Adorno - Não é recente esse fenômeno dos assassinatos de políticos e também de jornalistas mortos porque seu trabalho ameaça políticos poderosos. Mas até então era mais comum em cidades pequenas e médias, sem tanta repercussão na mídia. De qualquer forma, é preocupante. Está geralmente ligado à polarização e à radicalização.
• Por que a violência ocorre?
Primeiramente, nada justifica a violência. Numa sociedade democrática, existem mecanismos institucionais de enfrentamento dos conflitos, como os partidos, os espaços parlamentares, a mídia.
O limite do confronto é provocar dano à integridade física do seu opositor. No Brasil, não estabelecemos esse limite. Os conflitos vão se tornando cada vez mais graves e passionais, levando à ideia de que problemas só são resolvidos com a supressão do opositor, transformado em inimigo.
Isso faz parte de uma sociedade democrática que ainda lida mal com seus conflitos. Qualquer um pode ter posições políticas divergentes das do candidato Lula da Silva, mas isso não justifica agressão à integridade física de quem quer que seja, tanto dele quanto de seus apoiadores.
• O governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) afirmou inicialmente que o PT colheu o que plantou.
Achei que foi uma afirmação de cálculo político. Ele sabe que cresce se tirar uma fatia do eleitorado do [Jair] Bolsonaro, e para isso ele [Alckmin] precisa se colocar numa posição de crítico da esquerda. Eu entendo que é uma estratégia política, ainda que ele possa até acreditar nisso.
• A polarização que vivemos é um combustível?
Sim. Ela constrói um mundo de polaridades não negociáveis: certo e errado, justo e injusto, acerto e erro, verdade e mentira. A sociedade democrática é justamente aquela que lida com as diferenças. A polarização é um mal e é incompatível com a vida social.
Temos que enfrentar isso, porque a situação sempre pode se inverter. O apedrejador de hoje pode ser o apedrejado de amanhã. Perde-se o controle. A vida democrática precisa de previsibilidade de comportamentos. Se você vai para um debate sabendo que vai matar ou morrer, não é debate, é confronto de forças.
• Era um cenário previsível?
Em 2013, com os protestos, começa a se delinear um ajuste de contas de algo que estava sendo fermentado já havia alguns anos. E depois há uma disputa cada vez mais radicalizada, com 2014 mostrando essa divisão nas urnas.
Com a rarefação do discurso político, em que não se discutem saídas para o país, mas sim quem tem razão, vem um empobrecimento da vida associativa. Você seleciona com quem quer conversar, só se associa com os semelhantes.
• É possível atribuir a radicalização à esquerda ou à direita?
Tem havido uma radicalização dos dois lados, e ela se retroalimenta. Nem toda esquerda é radical, nem toda direita é radical. Mas as forças estavam se armando.
Temos uma sociedade que combina três fatores: a crise econômica, os impasses institucionais e o fato de terem vindo a público os mecanismos de corrupção que existiam há tempos, mas que não eram problematizados. É uma combustão agregada.
• E aí as pessoas apelam para a violência?
Há uma frustração geral, com candidatos, partidos. Grupos e classes reagem de maneiras diferentes. Um indivíduo pode ficar indiferente, outro pode ficar inquieto, outro extremamente ansioso. Quando essa frustração se transforma em ação política, pode ocorrer uma ação democraticamente aceita, como a realização de protestos, ou os indivíduos podem querer pegar em armas, fazer justiça com as próprias mãos.
• E há tendência a isso no Brasil?
Quero crer que não. Você pode se perguntar como tem gente embarcando nesse radicalismo, que é uma atitude absolutamente preocupante.
Como sociólogo, procuro pesar as diferentes forças e argumentos, para não embarcar numa visão catastrófica. Senão a gente estimula o medo e a busca de soluções “salvadoras”. Toda saída deve ser prevista no campo democrático, do diálogo, das ideias.
• Faz sentido chamar de fascistas alguns dos atos no Brasil, como fazem certos grupos?
O fascismo é um fenômeno muito mais complexo para simplesmente transportá-lo e aplicá-lo na realidade daqui. Mas é claro que há traços que lembram: a intolerância, o apelo à violência e ao pensamento único, a ideia de que a ordem se garante com medidas coercitivas, duras.
A sociedade brasileira convive com o chamado autoritarismo socialmente enraizado. Nem a transição da ditadura militar para a democracia conseguiu eliminar o emprego da força como um recurso de poder. Acho que estamos vivendo um momento de reavivamento disso. Paradoxalmente, esse autoritarismo convive com uma cultura política democrática.
• O sr. vê risco de adiamento da eleição de outubro em razão desse reavivamento?
Não tenho evidências claras disso. Acho que aqueles que estão se candidatando são os que mais têm interesse em que esse pleito seja realizado. As pessoas estão com muita expectativa de mudança de governo. Basta ver a popularidade do presidente.
• Que saídas podem ser buscadas contra a radicalização?
Nesse ponto sou muito convencional: temos que adensar o debate político. Sair dessa coisa rasa de radicalizar entre o bom e o mau, o certo e o errado, e buscar pontos de encontro. Nós, intelectuais e membros da academia, temos que nos recusar a entrar nessa batalha campal.
• E como fazer isso chegar ao eleitor mais comum?
É uma tarefa das mais desafiadoras, porque nós muitas vezes falamos para nossos pares. Os partidos também precisariam de uma autocrítica. E o eleitor tem que fazer a sua parte. Eleições são momentos privilegiados para qualificar o debate público.
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