segunda-feira, 15 de abril de 2019

*Denis Lerrer Rosenfield: Conceitos de política

- O Estado de S.Paulo

Militares no governo Bolsonaro estão sendo exemplo de moderação e ponderação

O ambiente político não anda conturbado tão somente por razões acidentais ou de inexperiência dos atores políticos, mas tem uma causa mais profunda, consistente no modo de compreensão da política. O atual governo age segundo um conceito de política baseado na oposição amigo/inimigo, em que o outro é visto como alguém que deve ser desqualificado e aniquilado. Outro conceito de política residiria na consideração do outro enquanto adversário, suscetível de ser convencido, e não suprimido. Denominemos o primeiro conceito de política de totalitário e o segundo, de democrático.

Totalitário porque foi elaborado por um teórico do nazismo, Carl Schmitt. Segundo essa acepção, a esfera da política seria uma espécie de arena de luta até a morte entre amigos e inimigos. Os amigos são os que compartilham a mesma concepção, enquanto os inimigos são os que dela divergem. A crítica, nesse sentido, não é aceita, pois significaria uma espécie de rompimento da concepção vigente ou que está sendo imposta. Instituições que exigem a composição e a negociação, como Parlamentos, são, portanto, tidas por impróprias, decadentes ou corrompidas.

Transplanta-se, assim, para esfera da política a lógica militar da guerra. Nesta, exércitos se enfrentam buscando a derrota do outro, impondo-se o poder da força. Tal acepção vale também em casos de guerra civil, quando, na ausência de composição interna, as forças contendoras entram em conflito aberto, recorrendo às armas. A política fica a reboque de sua acepção militar.

O conceito democrático de política, por sua vez, foge do conceito de guerra ao inimigo, pautando-se pelo reconhecimento do outro como detentor de igualdade política. Não está em seu escopo o aniquilamento do outro, uma vez que sua forma de atuação reside na instituição parlamentar, na separação de Poderes e na liberdade de opinião e expressão. Eis por que a democracia representativa preza as instituições que são espaços de negociação, de convencimento e, mesmo, de judicialização das divergências.

A política bolsonarista, em seu período eleitoral, regeu-se por essa acepção excludente da política, usando e abusando da retórica do inimigo a ser desqualificado, cuja forma mais significativa foi o emprego da oposição “nova/velha política”. A “nova” seria a dos virtuosos, dos não corruptos, dos bons, que se oporiam a todos e a tudo que está aí. Os políticos e os partidos foram, então, tidos por algo a ser desprezado e posto de lado. Nesse sentido, as redes sociais foram um instrumento particularmente adequado, pois dados a sua economia de palavras e o seu modo de expressão, prestam-se, particularmente, ao enfrentamento e ao ataque. Elas funcionariam segundo a oposição amigo/inimigo.

Observe-se que a política petista empregou idêntico conceito de política. Lula utilizava a mesma oposição amigo/inimigo sob a forma das oposições excludentes, entre “conservadores e progressistas”, “direita e esquerda”, “nós e eles”. Atente-se para o conceito de política que ganha essas diferentes formas narrativas, que foram o sustentáculo dos governos petistas. Lula tinha incomensurável desprezo pelo Congresso, pelos partidos e pelos parlamentares. Ora eram picaretas, ora companheiros de negociatas.

No governo, pautado por instituições democráticas, o presidente Bolsonaro seguiu predominantemente a utilizar o mesmo conceito de política que lhe tinha sido tão benéfico na campanha eleitoral. Seu grupo próximo, constituído de civis, continuou empregando as redes sociais da mesma maneira, terminando por produzir conflitos incessantes com políticos e partidos. Evidentemente, estes não se reconhecem nessa forma de fazer política, uma vez que são considerados representantes da “velha política”, como se fossem, por isto mesmo, desqualificados e corruptos. O resultado é palpável: o governo não consegue negociar e, portanto, não avança em suas pautas reformistas na esfera legislativa.

Ora, a negociação faz parte da atividade parlamentar e executiva, é uma forma específica de fazer política, no Brasil e alhures. Não há nada de ilícito em que um parlamentar negocie recursos para a sua base eleitoral, sob a forma de creches, postos de saúde e escolas. O problema está no desvio desses recursos para o bolso do parlamentar, questão que pode ser equacionada com uma fiscalização eficiente.

Acontece, todavia, que a narrativa bolsonarista identifica a negociação com algo a ser descartado. Tal política enquadra-se, sobretudo, em sua pauta conservadora, baseada em fundamentos religiosos. Ela se torna propícia para a oposição entre amigos e inimigos, sob a forma dogmática dos bons e dos maus, dos virtuosos e dos pecadores.

Do mesmo modo, o teórico dos bolsonaristas, Olavo de Carvalho, conforme a sua teoria mundial conspiratória, está sempre procurando inimigos para serem desqualificados, na medida em que essa concepção vive da reiteração de tal oposição. O desprezo pela pauta liberal no campo moral e econômico é sua consequência natural. Volta-se para o velho nacionalismo, contra a ideia liberal de globalização, como se a pauta conservadora devesse ter o primado sobre a reformista. Daí surgem as posições antiestablishment, como se a narrativa governamental devesse ser a de uma mobilização constante da sociedade, em que os amigos e os inimigos, os bons e os maus estariam perpetuamente se enfrentando.

Os militares no governo Bolsonaro estão sendo um exemplo de moderação e ponderação. São abertos à negociação e à composição, mostram-se firmes partidários das instituições democráticas. Note-se que, por formação, estariam mais propensos a adotar a política como forma de oposição entre amigos e inimigos, uma vez que essa é a forma da guerra para a qual foram e são treinados. Ou seja, é um grupo de civis que segue a lógica da guerra, enquanto os militares seguem a lógica civil da democracia.

*Professor de filosofia na UFRGS.

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