domingo, 5 de abril de 2020

Ricardo Rangel* - A esfinge e o precipício

- O Globo

Bolsonaro não percebe que mortes terão impacto maior sobre suas chances de reeleição do que a recessão?

No mito grego, a esfinge era um monstro que lançava um enigma aos passantes e os devorava se não o decifrassem. A esfinge brasileira, o “mito” de conduta indecifrável, é Jair Bolsonaro. O presidente recomendou o cancelamento da manifestação do dia 15, e compareceu. Combinou com seus ministros de se isolar, e foi visitar a periferia de Brasília. Fez um pronunciamento radical e alucinado; depois fez outro, negando o primeiro; em seguida voltou a atacar o isolamento e os governadores e ameaçou reabrir o comércio com uma “canetada”. Impossibilitado de convocar os fãs para mais uma manifestação, conclamou-os a um patriótico jejum contra o vírus (dado que a má alimentação reduz a imunidade, o vírus agradece).

Bolsonaro ataca seu ministro da Saúde em plena crise e ameaça demiti-lo — instado a comentar a ameaça, Mandetta respondeu que quem “tem mandato, fala”, e quem não tem, como ele próprio, “trabalha”. Deve ter sido a primeira vez na história em que um ministro chama o presidente de boquirroto e preguiçoso: Mandetta parece que aceitou o conselho do general Heleno e ligou o dane-se.

Em sua atitude contra o ministro, a ciência, a Organização Mundial da Saúde, e até seu ídolo Donald Trump, o presidente tornou-se uma espécie de unanimidade. Estão contra ele o Congresso, o STF, a imprensa, praticamente todos os ministros (inclusive os militares), o vice-presidente, a comunidade internacional, o Twitter, o Facebook, o Instagram. E o povo: seu índice de desaprovação no combate à pandemia subiu de 33% para 39%, enquanto que a aprovação de Mandetta saltou de 55% para 76% (o Brasil é o único país em que a aprovação de um ministro é inversamente proporcional à do presidente). Em breve, quando as mortes chegarem ao auge, o “mito” deve perder apoio até entre seus maiores fãs, que, descrentes do perigo, são justamente os que sofrerão mais.

Mas por que Bolsonaro insiste em uma rota suicida? Não se incomoda com as mortes? Não percebe que elas terão um impacto maior sobre suas chances de reeleição do que a recessão? Acreditará que é mesmo uma “gripezinha”? Ou que a cloroquina vai resolver tudo? Conta com a providência divina?

É inútil buscar explicações racionais para a conduta de Bolsonaro: o que o move é ciúme, inveja, ressentimento, paranoia, obstinação. Ele não se conforma com o sucesso alheio, crê que quem não se submete é seu inimigo, não aceita ser contrariado (nem mesmo por um vírus). No mito grego, é Édipo quem decifra o enigma da esfinge — que, desesperada, se atira no precipício. Há muitos indícios de que o Complexo de Édipo é a chave para decifrar Bolsonaro, mas decifrá-lo não vai torná-lo uma pessoa razoável nem mudará sua conduta: ele continuará a nos devorar até cairmos todos no precipício.

Muita gente entendeu que o “mito” não vai mudar: há contra Bolsonaro três pedidos de impeachment, duas representações criminais, fala-se em interdição psiquiátrica, e, segundo consta, os ministros militares vêm fazendo gestões em favor da renúncia. Remoção de presidente é sempre ruim, mais ainda em uma crise, mas Congresso, Supremo e ministros precisam se preparar, porque a chance de ela se tornar inevitável aumenta dia a dia. De alguma maneira, a esfinge terá que ser detida.

*Ricardo Rangel é empresário

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