quarta-feira, 24 de junho de 2020

Monica De Bolle* - O maior dos descasos

- O Estado de S.Paulo

Enquanto o País quer a volta da normalidade perdida, o governo anuncia o fim do auxílio emergencial

O Brasil ultrapassou os 50 mil óbitos causados pelo SARS-CoV-2, o vírus responsável pela síndrome denominada covid-19, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). De acordo com os modelos epidemiológicos mais apurados, é provável que o Brasil alcance a terrível marca dos 100 mil óbitos até meados de julho. Em meio a tantas mortes, tantas pessoas sofrendo nos hospitais, tantas famílias destroçadas, testemunhamos a indiferença de boa parte da população brasileira. Com a “reabertura”, festeja-se o retorno aos shopping centers, aos restaurantes, às academias. Festeja-se as aglomerações, os churrascos, a volta da “vida normal”. Espanta a falta de percepção de que a vida está e seguirá longe do normal.

A vida não está, nem deveria estar normal, em primeiro lugar, porque os mortos pela covid-19 se somam dia após dia. A comoção que o País sentiu pelos italianos e pelos espanhóis parece passar longe dos olhos e do coração de muitos brasileiros, agora que morrem seus concidadãos.

Em segundo, há um vírus letal e altamente imprevisível em circulação. Esse vírus pode não causar sintoma algum, pode causar sintomas leves, pode levar o paciente a ser entubado, pode levar à morte. Esse vírus, como mostram estudos, pode se alojar nos pulmões, no sistema vascular, nas articulações, no sistema neurológico. Pode deixar sequelas severas. Mas, no Brasil atual, é como se ele não existisse. A vida segue como se as pessoas por ele vitimadas fossem apenas números que se computam todos os dias: sua morte não modifica o presente, nem se nota no governo federal ou em parte da sociedade brasileira qualquer intenção de responder à crise humanitária que assola o País.

Desde o início dessa pandemia – e sobretudo desde que chegou ao Brasil – tenho dito que a economia permanecerá contaminada pelo vírus enquanto ele estiver em circulação. Em artigos para esse espaço e nas transmissões diárias registradas em vídeo que tenho feito há três meses no meu canal do YouTube tenho insistido que, independentemente de medidas sanitárias, o que afeta a economia é o vírus. Isso significa que não haverá normalidade econômica com as pessoas morrendo aos milhares, e é importante que essa impossibilidade fique clara. Os restaurantes cheios, os shopping centers cheios, todos esses estabelecimentos, que são foco de contágio e de disseminação da epidemia, sofrerão as consequências do descontrole da doença. Muitos talvez venham a fechar as portas novamente antes mesmo de terem recuperado perdas decorrentes do fechamento anterior. Os trabalhadores precarizados e mais sujeitos ao contágio talvez sejam infectados, talvez percam qualquer possibilidade de subsistência. De nada adianta fingir que o vírus não existe. Ele está aí e em breve chegará a uma pessoa próxima de cada um, pois essa é sua natureza.

Enquanto se abraça o descaso, enquanto alguns são embalados pela ilusão de uma volta à normalidade perdida, o governo brasileiro aproveita o ensejo para anunciar o fim do auxílio emergencial. De tudo o que se fez e não se fez no Brasil ao longo dos últimos meses, a única medida realmente adequada e relevante que se adotou foi o auxílio emergencial, apesar da sua péssima implementação pelo governo federal. Removê-lo no meio de uma epidemia que continuará a matar, a destruir famílias, a fomentar o medo e a insegurança é uma aposta em infundir medo. Não me parece despropositado entender que acabar com o auxílio emergencial, nas circunstâncias presentes, é uma forma de continuar uma política abjetamente irresponsável que a pandemia deu ao governo federal a oportunidade de implementar. Também não é exagero afirmar que, hoje, o fiscalismo excessivo – o zelo pelas contas públicas nesse momento inédito, o dogma do teto de gastos -- abraçado por alguns economistas mata.

O auxílio emergencial e o deslocamento da renda básica da cidadania para o centro do debate público revelam que às vezes vale apostar no que deve ser comum a nós todos: o direito à vida digna, a inclusão na democracia, a igualdade de voz na política. Eles também revelam, no entanto, que isso que nos deve ser comum, a experiência da cidadania, depende de condições materiais. O auxílio emergencial e a renda básica nos unem como sociedade, algo que ameaça qualquer governo que só consegue se sustentar provocando divisões e tensões. Não é hora de acabar com o auxílio emergencial. Também há risco em tornar a causa da renda básica, cujo interesse é transversal à sociedade, uma plataforma a partir da qual generalizar outras lutas, ainda que justas e urgentes. A renda básica terá efeitos sobre injustiças históricas que têm sido articuladas em termos de diferenças, mas ela não é sobre diferenças. Pelo contrário: a melhor forma de se construir a renda básica ao público é a partir daquilo que temos em comum: o direito à cidadania.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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