Valor Econômico
Crises fiscais e inflação assombram o país
há 200 anos
Esqueça o brado retumbante de um povo
heroico ouvido pelas margens plácidas do Ipiranga, cantadas no Hino Nacional.
Há duzentos anos, quando rompemos os laços de submissão que nos prendiam a
Portugal, o grito “ou ficar a Pátria Livre ou morrer pelo Brasil”, mencionado
no Hino da Independência, foi apenas uma frase de efeito. Na verdade, “o Brasil
nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit; sua mãe, a inflação”.
Provocadora, a frase sintetiza as
conclusões de uma pesquisa profunda e um texto muito bem escrito conduzidos pelo
jornalista Rafael Cariello e pelo economista Thales Zamberlan Pereira. “Adeus,
senhor Portugal: crise do absolutismo e a Independência do Brasil”, que será
lançado hoje em São Paulo, mais que uma robusta tese sobre o contexto da nossa
Independência, utiliza a economia para conectar as circunstâncias do passado
com os desafios do presente.
Desde que Dom João VI e a família Real se instalaram no Rio em 1808, após fugirem da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão, sobriedade e contenção não eram virtudes cultivadas por aqui.
Os gastos palacianos eram absurdos. Entre
1808 e 1821, quando o monarca retorna a Lisboa, as despesas destinadas à
manutenção da família Real e seu séquito de cortesãos giravam entre 20% e 29%
do total de dinheiro o que o Estado português aplicava no Brasil.
Além dos empregados, festas, banquetes e a
manutenção de palácios, havia a distribuição de privilégios. Junto com os
títulos de viscondes, barões e comendadores, seguia-se uma farta distribuição
de ajudas de custos, pensões, rendas, monopólios e outras benesses arcadas pelo
Tesouro Real.
Para piorar, o Reino se digladiava em duas
frentes. Em Portugal, o Exército estava envolvido em batalhas e escaramuças
para expulsar as tropas napoleônicas invasoras. Na América, mobilizava tropas
para conquistar a província Cisplatina, atual Uruguai, e assim garantir o
acesso à foz do rio da Prata. As guerras tinham preço alto e crescente - entre
1808 e 1820, os gastos militares, somente no Brasil, aumentaram duas vezes e
meia.
Para arcar com as pesadas despesas com a guerra
e com a Corte, recorreu-se à elevação dos tributos sobre nossas commodities.
Açúcar e algodão, principalmente nas províncias da Bahia, Pernambuco e
Maranhão, viviam um boom internacional com a Revolução Industrial.
Mas o aumento da carga tributária não foi
suficiente. Para cobrir os déficits, o governo passou a recorrer ao Banco do
Brasil. Fundado em 1808, o BB se tornou o principal credor do Reino Unido de
Brasil, Portugal e Algarves. Os autores levantaram dados que revelam que, nos
últimos anos da Corte joanina no país, 34% da receita do reino vinha de
empréstimos bancários.
Como principal acionista do BB, o governo
também colocou as máquinas de impressão de cédulas e moedas para girar mais
rápido. O montante de papel-moeda em circulação quadruplicou entre 1814 e 1820.
A emissão descontrolada de moeda logo resultou em inflação. Nas contas de
Cariello e Zamberlan Pereira, os dois principais itens da cesta básica da
população, farinha de mandioca e carne-seca, dobraram e triplicaram de preço
entre 1815 e 1830.
A cuidadosa pesquisa feita pelos autores
também demonstra que a inflação corroeu os salários da emergente classe média
urbana do Rio de Janeiro e de Salvador. Profissões de maior qualificação
naquele tempo, como carpinteiros e pedreiros, tiveram seus rendimentos reais
corroídos pela carestia.
A inflação penalizava não apenas
trabalhadores e consumidores. Os grandes proprietários de terra passaram a ter
que arcar com valores cada vez mais altos para alimentar e manter seus estoques
de negros escravizados.
Quando o Banco do Brasil ficou à beira da
falência, o governo começou a atrasar os pagamentos dos soldos do Exército. Com
o povo, militares e elites insatisfeitos com a situação econômica, o colapso,
que começou no campo fiscal e contaminou o lado monetário, disseminando a
inflação, ganhou contornos políticos. A Independência se tornou inevitável.
Crises fiscais e crises políticas andaram
juntas ao longo da história brasileira desde então.
Para ficar apenas nas últimas décadas, o
golpe militar de 1964 e a queda da ditadura em 1985, bem como os impeachments
de Collor e de Dilma, em todas essas inflexões de nossa história estão
presentes descontrole fiscal, inflação e convulsão política.
Dom Pedro I assumiu o trono do novo país e
não foi capaz de oferecer soluções para os problemas daquela época: o
descontrole nas contas públicas, as relações conflituosas entre a Corte e suas
províncias, o inchaço do funcionalismo público, o sistema tributário
disfuncional e a maior das nossas aberrações, a escravidão.
Substitua “Corte” por “União”, “províncias”
por “Estados e municípios” e, principalmente, “escravidão” por “desigualdade
social” e, transcorridos dois séculos, está tudo aqui ainda.
Se o modelo de Estado adotado no Brasil
após a Independência, segundo Cariello e Pereira, poderia ser descrito como uma
“monarquia constitucional oligárquica”, pois apenas uma pequena fração da
sociedade brasileira estava representada no Congresso, mantendo uma sociedade
profundamente desigual, não seria exagero dizer que, pelas mesmas razões, nós
vivemos hoje numa “República constitucional oligárquica”.
Caso o coração de Dom Pedro I falasse,
talvez ele teria um recado a dar aos atuais dois líderes na disputa pela
Presidência da República.
A Jair Bolsonaro, ele diria que ações autoritárias,
como a dissolução da Assembleia Constituinte - o Congresso da época - em vez de
resolver a crise, apenas postergou em alguns anos a necessidade de sair fugido
do Brasil.
Para Lula, o recado estaria na economia.
Depois do oba-oba da consagração como líder da nação, se não houver coragem
para enfrentar os graves problemas fiscais, a popularidade logo se esvai.
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
3 comentários:
Oxalá, pudéssemos ler artigos com esse teor mais frequentemente. A História do Brasil não é divulgada como fazem a História de outros países, é uma pena!
Ótima coluna! Parabéns ao colunista e ao blog que divulga seu trabalho. Os recados a Bolsonaro e Lula são válidos. O problema é que Bolsonaro é analfabeto funcional e não gosta de ler e nem de trabalhar. Só quer fazer motociatas e agredir a imprensa e as mulheres! Lula, o grande líder da nação, também é chegado numa demagogiazinha. Então, sabe-se lá como ele enfrentará tão grandes e graves problemas econômicos ampliados durante todo o DESgoverno Bolsonaro! Nos 8 anos de seu mandato, deu relativamente certo. Nos governos de Dilma, a coisa degringolou e as receitas petistas fracassaram...
Belíssimo artigo.
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