Folha de S. Paulo
Numa eleição incomparável, dar a Bolsonaro
chance do segundo turno põe tudo em risco
Política democrática é política do sonho e
da frustração. Muita frustração. Impõe escolhas não-ideais e subótimas, mas
entrega o que regimes não democráticos sonegam: canais para reivindicação de
direitos e controle do poder. Abre portas para reclamar por liberdade e
dignidade. Por desenvolvimento econômico e social. Distribui o direito de
disputar o passado, o presente e o futuro a partir de regras compartilhadas.
Envolve paixão, mas também requer
responsabilidade. Requer disposição de eleitores e candidatos para perderem sem
melar o jogo. Requer atenção para reconhecer quando a possibilidade de jogar
está em risco evidente, e maturidade para minimizar esse risco.
A violação estrutural e contumaz de regras eleitorais sempre foi o modo bolsonarista de competir. Não é apenas traço de caráter, mas projeto orquestrado de mudança regressiva de regime político, também chamado de autocratização. Um projeto tão claro nunca esteve em curso nos 30 anos anteriores.
A eleição presidencial
de 2022 converteu-se numa eleição existencial. Se quiser provas,
percorra as páginas do jornal de hoje, de ontem, de amanhã. Não se compara com
qualquer eleição entre 1994 e 2014. Nem mesmo à eleição de 2018. Por nenhum
critério relevante. Somente a indiferença ou a cegueira à espiral da violência
política, do armamento militante de grupo atiçado por filosofia política da
supressão do mais fraco, levam a conclusão diferente.
Antes de qualquer coisa, a eleição de 2022
é a eleição da clareza negativa, um consenso minimalista sobre o que não se
quer. Exige visão da magnitude do risco, senso de emergência e cuidado para não
cair na armadilha do "narcisismo das pequenas diferenças", aquele
conflito fratricida que emerge, às vezes, entre os que mais se parecem, mas não
se suportam.
Não há polarização entre Bolsonaro e Lula,
mas entre Bolsonaro e qualquer ente que atrapalhe desejos seus e da grande
família. A política democrática, outra senhora que lhe tira do sério, é um
desses obstáculos.
Bolsonaro está armado. Pede deferência ou
morte. Cidadãos estão com medo de sair à rua. Outros
sendo mortos ou ameaçados. Adversários vêm sendo abordados no espaço
público por gente com pistola na cintura. É assim que se opera em Rio das
Pedras, é assim que se opera no planalto bolsonarista.
Um segundo turno é a colher de chá que
deseja: o prêmio de quatro semanas em que pode disparar, sem afetar interesses
eleitorais de aliados, seu arsenal atômico.
A ideia de que Simone Tebet ou Ciro Gomes
oferecem vias despolarizantes é tão sagaz quanto a ideia de que Aras
descriminalizou a política, Gilmar Mendes resgatou o estado de direito e
Damares protege a vida, a mulher e a família. Tão proba e honesta quanto
ministro de corte superior que aceita mimos na Europa pagos por advogado que se
beneficia de decisões do agraciado. Tão desconcertante quanto candidatar
Paulo Guedes para o Nobel de economia.
A recusa em admitir a anormalidade brutal
da política bolsonarista, mesmo pelos frágeis padrões de normalidade dos
últimos 30 anos, está ajudando a liquidar os ativos democráticos que restam.
Negacionistas do risco democrático, essa
turma animada que congrega cientistas políticos, jornalistas, economistas,
autoridades e até ministros do STF, sambaram no palco da preguiça analítica e
da apatia política. Ironizaram o alarme num edifício em chamas. Chamaram de
alarmismo os esforços pragmáticos de autodefesa. E descansaram na poltrona
reclinada do antialarmismo sedentário.
Enquanto as casas de tolerância à
delinquência política continuam a brochar, Bolsonaro remove pilares
democráticos. Politicamente, nunca brochou. E pensavam que ele se referia à sua
contestada potência sexual. Não era só um pândego de palanque, com pânico de
brochar, mas um profissional da violência simbólica e concreta.
O voto
resignado em Lula no primeiro turno não se confunde com "voto útil"
porque nosso repertório conceitual da normalidade política não se aplica a uma
eleição existencial. No conceituário da emergência, "voto útil" perde
lugar. Frívola demais, a noção subestima a enormidade do perigo. Fraca demais,
não justifica nem explica escolhas eleitorais nessa conjuntura.
Estamos diante de "voto de
sobrevivência". Sobrevivência de um projeto de vida individual e coletivo.
Onde igualdade na diferença e liberdade na interdependência tenham alguma
chance.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
5 comentários:
Excelente texto, brilhante argumentação! Esta coluna rebate amplamente a opinião de Merval Pereira hoje neste mesmo blog! Entre Merval e Conrado, não tenho dúvida em concordar integralmente com o Conrado!
Excelente artigo,sabia que não ia me decepcionar,Conrado Mendes é o cara.
O colunista tem razão! Derrotar Bolsonaro é nossa única alternativa de sobreviver.
Só não entendo como pode um ser tão medíocre, um baba-ovo de torturador (Lambuzado de fezes e sangue Ustra), lambe-botas de general de republiqueta (Pinochet), puxa-saco de latifundiário (e seus garimpeiros, madeireiros, grileiros), macaca-se-auditório de Trump pode causar tanto estrago (tocando fogo na Amazônia, envenenando com mercúrio e matando índios). Também, apesar de nepotismo ser proibido, a Carta de 1988 não previu a possibilidade de uma orcrim chegar ao poder (Gabinete do Ódio, Escritório do Crime, Milícias, Rachadinha, lavagem de dinheiro comprando imóveis com dinheiro vivo). Mas por sorte nossa frente democrática antifascista se constituiu. Tal frente não se limita à frente eleitoral encabeçada por Lula e Alckmin, mas por todo o poder judiciário, a imprensa, as mulheres, os negros, os gays e quem quer que conheça a diferença entre nazismo e democracia. Mesmo um fascismo bundalelê.
A campanha bolsonarista de 2018 foi muito competente e conseguiu canalizar o sentimento antipetista e mesmo a decepção de muitos apoiadores de Dilma/Lula com os governos e métodos petistas. Mas a completa incompetência de Bolsonaro para administrar foi desgastando seu DESgoverno, sendo ele próprio talvez o seu maior adversário, dando seguidos tiros nos próprios pés.
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