sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Flávia Oliveira - Milagres eleitorais

O Globo

Foi pela dor da crise decorrente da pandemia que o Brasil se convenceu da relevância das políticas de transferência de renda. Por convicção, amadurecimento ou oportunismo, é marcante na corrida eleitoral deste 2022 que candidatos de todas as colorações ideológicas hoje debatam não a existência, mas a permanência no maior valor possível, de programas como o Bolsa Família, rebatizado um ano atrás de Auxílio Brasil. Dos milagres que uma campanha à reeleição opera, até Jair Bolsonaro passou a louvar o programa que, quando deputado, cansou de execrar. Ontem, na falta de previsão na Lei Orçamentária, foi a vez de o ministro Paulo Guedes sugerir, para manter o benefício mínimo de R$ 600 por família, se o presidente sair vitorioso das urnas, a prorrogação do estado de calamidade no país. Errado não está. Benza Deus.

Custou à sociedade brasileira compreender a urgência e a necessidade das políticas sociais para enfrentar desigualdades e produzir (algum) bem-estar social num país que não é pobre, mas tem gente demais em situação de vulnerabilidade. Um dos maiores produtores e exportadores de carnes e grãos do mundo tem 33 milhões de pessoas passando fome e metade da população em situação de insegurança alimentar, apurou a Rede Penssan. Mesmo em recuperação após ciclos de demissões decorrentes da recessão e da crise sanitária, o mercado de trabalho contava, no trimestre maio-julho, 9,9 milhões de desempregados e 39,8% dos ocupados na informalidade, informou o IBGE.

O enfrentamento à fome foi içado ao topo da agenda brasileira pelas mãos do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, na Ação da Cidadania, nos anos 1990. Virou política pública e ganhou escala nos governos do PT, nas décadas seguintes. Hoje está elencado nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. A meta número 2 é erradicar a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável nos países até 2030. A meta número 1 é pôr fim à pobreza, em todas as formas, em todos os lugares.

O Bolsa Família era um programa bem-sucedido de transferência de renda a famílias miseráveis e pobres com condicionalidades em educação, caso da frequência escolar, e saúde, expressa na obrigatoriedade da vacinação. Ao longo de 18 anos, ajudou a reduzir a desigualdade social e retirou o Brasil do Mapa da Fome da ONU. No governo de Michel Temer, por iniciativa do então ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, passou por um “pente-fino” e começou a encolher.

No primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, em vez de atualização monetária, ganhou parcela adicional. Anunciado como décimo terceiro, não passou de solitário abono. Os efeitos da pandemia, por pressão da sociedade civil e do Congresso Nacional, levaram ao pagamento do Auxílio Emergencial de R$ 600, que chegou a alcançar 68 milhões de brasileiros em 2020. A pobreza despencou e a popularidade do presidente, que nunca se preocupara nem com vulneráveis nem com vacina, disparou.

A política social salvou vidas e a economia. Virou unanimidade. No primeiro ano da tragédia da Covid-19, o PIB caiu 3,9%, metade do previsto, porque o auxílio segurou as vendas do comércio. O efeito multiplicador já era conhecido: renda mínima é sinônimo de consumo. Ainda ontem, o IBGE apresentou os resultados do PIB no segundo trimestre. Houve crescimento de 1,2% sobre os três meses anteriores, quarto resultado positivo seguido. O setor de serviços avançou 1,3%, o consumo das famílias 2,6%.

A melhora do mercado de trabalho pesou, assim como a liberação do saque emergencial do FGTS, a antecipação do décimo terceiro de aposentados e pensionistas. O Auxílio Brasil de R$ 400 aprovado para o ano eleitoral — e, desde o mês passado, acrescido de R$ 200 — também ajuda a atividade econômica, mesmo no cenário de inflação galopante no preço dos alimentos.

Por oportunismo eleitoral, Bolsonaro e equipe esfacelaram o Bolsa Família, mas reconheceram a relevância da política social de transferência de renda. Um mandato que começou propondo na reforma da Previdência o fim do Benefício de Prestação Continuada, a assistência de um salário mínimo a idosos e pessoas com deficiência em situação de pobreza, se aproxima do fim rendido a um programa de renda mínima, ainda que mal desenhado e aplicado.

O piso de R$ 600 não calibrado pelo tamanho das famílias produz injustiça, uma vez que, quanto menor o número de membros, maior o benefício per capita. Fragmentar os repasses em vales (gás, caminhoneiros, taxistas), após imenso esforço de unificação em décadas anteriores, também não é boa ideia, porque encarece e dispersa. O vaivém no valor do benefício — ora R$ 600, depois R$ 300, zero, R$ 400, R$ 600 novamente — é nocivo porque elimina a previsibilidade. Mas é bom sinal que, na campanha presidencial, os candidatos se comprometam com políticas de transferência de renda. Proteção aos mais pobres já não é dúvida, mas certeza.

 

3 comentários:

Anônimo disse...

Bolsonaro sempre criticou e foi contra as ações de transferência de renda. Agora, às vésperas da eleição, sua demagogia falou mais alto e ele teve que mudar sua posição e mentir que é favorável a 600 reais, quando sempre foi contra anteriormente e quando propôs um auxílio no meio da pandemia foi de 200 reais por pessoa (DUZENTOS REAIS).

ADEMAR AMANCIO disse...

Pensar na fome só para se reeleger é motivo de vergonha alheia coletiva.

Jorge disse...

Enquanto não implementarmos medidas que resolvam a causa raiz do maior problema brasileiro, os programas de transferência de renda são válidos. Porém, sabemos que é como insistir em um trabalho inútil. Não resolve o problema. Precisamos de um trabalho sério para educar e qualificar profissionalmente a população. Aí, sim, resolveremos o principal problema do país.