Folha de S. Paulo
O avanço da farda sobre as urnas significa
que a necessária separação entre Forças Armadas e política partidária começa a
ruir
Pôr em dúvida o mecanismo eleitoral para
desqualificar seus resultados é um dos mais batidos recursos a que apela a
extrema direita populista. Netanyahu, em Israel; Fujimori, no Peru; além do
notório Trump, usaram e abusaram nas campanhas das quais sairiam derrotados,
como talvez temessem.
Bolsonaro, portanto, não inova ao
disseminar —dia sim, o outro também— denúncias vazias sobre a votação
eletrônica. A sua contribuição original para a corrosão da democracia é outra:
a forma como vem tentando envolver as Forças Armadas na contestação antecipada
de sua provável derrota.
Já em 8 de agosto de 2021, no mesmo dia em que o Congresso abateu a PEC (Projeto de Emenda Constitucional) que tornava obrigatório o voto impresso, o ex-capitão fez os blindados da Marinha desfilarem na Esplanada dos Ministérios. Agora há pouco, tratou de confundir a parada militar e as exibições da Força Aérea pelos 200 anos de Independência com a mobilização por sua reeleição. Nos dois episódios, o que ele quis foi sugerir que os militares endossam suas investidas —por enquanto retóricas— contra as instituições democráticas.
Se isso não bastasse, se pôs a envolver o
Ministério da Defesa numa armação para desacreditar a urna eletrônica e o TSE
(Tribunal Superior Eleitoral), competente fiador da integridade do processo de
livre escolha popular.
A jogada mais recente, como se sabe,
consistiu na disseminação de notícias sobre uma possível interferência dos
fardados na contagem dos votos. Na sua última versão, isso se traduziria na
checagem da congruência entre os dados de 1% dos boletins de urnas e aqueles
utilizados pelo TSE para a soma dos votos. Trata-se de algo sem sentido do
ponto de vista técnico, mas carregado de intento político.
Um ministro da Defesa que fala mais de
eleição do que da segurança nacional é sintoma do mau estado das relações
civis-militares no país, observou recentemente o cientista político Octavio
Amorim Neto, da FGV (Fundação Getúlio Vargas). É também um sinal de alerta que
os defensores de eleições livres, paisanos ou uniformizados, não podem ignorar.
Ao redor do mundo, pleitos são gerenciados
de diferentes formas: alguns por órgãos governamentais; outros por comissões ou
tribunais independentes; ou ainda por uma combinação dos dois. Mas ali onde os
condutores do Estado são escolhidos em eleições regulares, livres e justas não
há um único caso de disputa supervisionada pelo aparato militar. A tutela da
farda sobre as urnas significa que a necessária separação entre Forças Armadas
e política partidária começa a ruir —e, com ela, a democracia.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Um comentário:
Verdade-Verdadeira.
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