O Estado de S. Paulo
O que o Brasil ganhou com a série de desfeitas e equívocos gratuitos de seu governo, inclusive em relação aos mais importantes parceiros do País?
O Itamaraty é uma das instituições mais
respeitadas do serviço público brasileiro. Seus funcionários são, via de regra,
competentes. O concurso de ingresso é rigoroso, a formação e o aperfeiçoamento
dos diplomatas estendem-se ao longo de toda uma carreira. Seu compromisso com o
País é inquestionável.
Não obstante, a política externa foi um dos
desastres do governo de Jair Bolsonaro. De início, o presidente seguiu, em suas
linhas básicas, a política externa de Donald Trump, que isolou os Estados
Unidos do mundo e fez adversários em todas as partes, inclusive na Europa, onde
os Estados Unidos sempre mantiveram alianças estreitas e amigos fiéis. Combateu
a ordem mundial concebida e implantada por iniciativa dos Estados Unidos nas
conferências de São Francisco e de Bretton Woods, logo após o término da
Segunda Guerra Mundial.
As confusas e obscuras visões de mundo de Ernesto Araújo, o primeiro chanceler de Bolsonaro, inspiraram-se nas exóticas teses de Steve Bannon, o influente guru e “estrategista” de Trump, que chegou a criar um “movimento” nacional populista na Europa, com sede no mosteiro medieval de Trisulti, na Itália. Seu objetivo era o de abrigar uma escola para a formação dos cruzados do século 21. Ali eles seriam adestrados para defender os valores da cultura judaico-cristã contra as ameaças dos infiéis e do materialismo ateu. Os alunos do Instituto Rio Branco foram convocados para assistir a palestras nas quais ouviram, perplexos, uma doutrinação em defesa dos valores do cristianismo medieval. Não chegaram a realizar o seu treinamento em Trisulti, mas no auditório do Instituto Rio Branco, em Brasília.
Influenciado por essas visões insólitas,
também compartilhadas por membros do gabinete da Presidência da República, o
governo Bolsonaro iniciou uma meticulosa demolição de algumas de nossas mais
respeitadas tradições diplomáticas. O alvo privilegiado, como também o era para
Trump, foi a ONU, particularmente o Conselho dos Direitos Humanos e a
Organização Mundial da Saúde. O multilateralismo passou, então, a ser
considerado uma ameaça aos interesses brasileiros.
Na mesma linha, o Mercosul, que já foi um
dos pilares de nossa diplomacia, sob Bolsonaro foi condenado ao descaso. Foi
acusado por não ter alcançado
a união aduaneira, nem mesmo o
livre-comércio, o que é em parte verdade, sem lembrar que muitos dos que faziam
a crítica são os mesmos que se haviam oposto a uma desgravação mais ampla. E
não reconhecem tampouco a contribuição valiosa da harmonização do marco
regulatório, nos mais diferentes setores, para a circulação mais desimpedida
dos bens e capitais, ciência e tecnologia, transporte e serviços de
infraestrutura, cultura e turismo, entre outros.
Nessas condições, o Mercosul ficou
praticamente restrito a uma discussão ociosa entre Brasil e Argentina sobre o grau
de redução da Tarifa Externa Comum, como se dois ou três pontos porcentuais,
para cima ou para baixo, pudessem fazer a diferença para atingir um patamar
mais elevado de integração entre os membros do acordo regional.
Enquanto isso, as reais questões sobre a
reforma do Mercosul, a dinamização do comércio, a ampliação ou a expansão em
direção à Aliança do Pacífico, ou mesmo em direção à Parceria Transpacífica,
passaram para o segundo plano, pois não é possível avançar numa agenda
regional, complexa e desafiadora sem o engajamento ativo dos chefes de Estado.
Outra iniciativa de que o Brasil havia
participado e mesmo liderado, o acordo MercosulUnião Europeia, está paralisada
diante das ofensas pessoais de Bolsonaro à esposa do presidente da França, um
episódio sem precedentes na história da diplomacia brasileira. A recusa em não
ratificar o acordo, da parte de outros países europeus, deveu-se ao
descumprimento pelo Brasil de seus compromissos com a redução do desmatamento
na Amazônia.
Por fim, vale relembrar os ruídos, senão
hostilidades, em relação aos dois mais importantes parceiros econômicos do
Brasil. A China, em razão das hostilidades gratuitas a membros de sua Embaixada
em Brasília. Os Estados Unidos, pela embaraçosa, mas deliberada demora no
reconhecimento da vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais
norte-americanas.
Na iminência de concluirse o governo do
presidente Bolsonaro, resta uma indagação central: o que o Brasil ganhou com
esta série de desfeitas e equívocos gratuitos de seu governo, inclusive em
relação aos mais importantes parceiros do País? Os riscos e custos são
conhecidos: o isolamento internacional do Brasil; a perda de sua liderança,
inclusive em nossa própria região; e a criação, pela Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de um comitê especial para
investigar a progressão do desflorestamento na Amazônia, cujos resultados serão
levados em conta na aprovação ou não do pedido de adesão do Brasil ao
organismo, por exemplo.
A política externa está entre os setores
que o próximo governo, qualquer que seja, terá de mudar substancialmente.
*Foi embaixador em Washington e presidente
do Conselho Empresarial Brasil-China
4 comentários:
Por que o papagaio bolsonarista não comenta esta matéria? Bolsonaro destruiu a política externa brasileira, e ainda destruiu a política ambiental, dificultando e impedindo fiscalizações, estimulando invasões de terras indígenas, liberando queimadas e desmatamentos que se multiplicaram pelo país, mas especialmente na região amazônica e no pantanal. Ernesto Araújo e Ricardo Salles, este já condenado antes de assumir o ministério (já aí Bolsonaro descumpria suas promessas de campanha, nomeando um criminoso para seu ministério, quando tinha prometido técnicos competentes e sem processo ou condenação), foram os piores ministros de suas pastas em todos os tempos! E Bolsonaro, o pior governante de toda a nossa história!
Esse artigo veio a calhar. O Brasil necessita que isso seja feito com urgência ou, ficaremos lembrados, eternamente como apenas mais um país da América Latina. A Argentina foi até o começo dos governos de Cristina a joia da A.L.. Não é mais.
Bannon e Trump queriam adestrar os "cruzados modernos" como são adestrados papagaios, ratos e outros bichos de estimação divulgadores da causa bolsonarista... No Brasil, com os "ensinamentos" do astrólogo Olavo de Carvalho... Estes, aliás, poderiam passar por um sigilo de 100 anos, como tantas outras coisas importantes da história bolsonarista!
A política externa brasileira foi desmantelada.
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