O Globo
Bolsonaro se dedica, entre choros e
queixas, a cometer desmandos onde ainda é possível
Final de ano no nosso planetinha é o
atropelo de sempre — uma insana correria atrás do tempo perdido. É como se a
virada do calendário demandasse um acerto com todas as contas deixadas em
aberto. Atarefados em zerar assuntos pendentes (imaginários ou reais), corremos
o dobro para não chegar a lugar algum. Com governantes não é diferente. Tome-se
o exemplo do ainda presidente Jair Bolsonaro. Com a ampulheta de seu tempo
regulamentar no poder já quase esvaziada, ele se dedica, entre choros e
queixas, a cometer desmandos onde ainda é possível — a possível extinção da Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a nomeação do capitão da PM
baiana André Porciuncula para a Secretaria Especial da Cultura brasileira, com
mandato de 14 dias úteis, e a condenação à mendicância terminal do Ministério
da Educação são exemplos desta semana.
É a raspa do fundo do tacho de um desgoverno funesto — mas que tem seguidores à altura de seu desvario. Não são lobos solitários. Estão e permanecerão em concertação, numa vigília ostensiva que não dá conta de suas ramificações. Até agora apenas um empresário, Milton Baldin, teve prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). No momento da prisão, Baldin estava no acampamento bolsonarista montado em frente ao Q.G. do Exército, em Brasília, participando de atos antidemocráticos e abertamente golpistas. Semanas antes, já usara as redes sociais para convocar abertamente a turma armada dos CACs, como são chamados os “colecionadores, atiradores desportivos e caçadores”:
—[Vocês que] têm armas legais, hoje nós somos, inclusive eu, 900 mil atiradores, venham aqui mostrar presença.
No mesmo dia, a mais de 9.500 quilômetros
de Brasília, uma operação policial em 11 dos 16 estados da Alemanha resultou
na prisão de 25 suspeitos de planejar um golpe de Estado armado contra as
instituições. À primeira vista, a notícia soou como algo ainda mais
estapafúrdio que o autogolpe chinfrim tentado nesta semana pelo então
presidente — agora presidiário — Pedro Castillo no Peru. À segunda vista,
também. Um dos chefes dos “Reichsbürgern” (Cidadãos do Império Alemão), grupo
extremista desmantelado pela polícia, tem 71 anos de idade e outros 700 anos no
nome tão aristocrata quanto obsoleto: Heinrich XIII, Príncipe de Reuss. Seu
parceiro no topo da pirâmide da conspiração, Rüdiger von Pescatore, também já é
quase septuagenário.
Mas, entre 1993 e 1996, Rüdiger comandara o
batalhão de paraquedistas #251, que, segundo a Deutsche Welle, viria a compor o
KSK, tropa de elite das Forças Armadas da Alemanha. Dentre os 150 endereços
vasculhados pela polícia na operação, um deles foi justamente o quartel do
Comando das Forças Especiais no sudoeste do país. Em mais de 50 propriedades
foram encontradas armas.
Cidadãos civis com treinamento militar ou
acesso a armas envolvidos em organizações extremistas como a Reichsbürger, que
nega a legitimidade do Estado alemão moderno, devem mesmo ser levados cada vez
mais a sério — tanto nos Estados Unidos e na Europa quanto no Brasil. Segundo o
Serviço de Inteligência Interna (BKI) da Alemanha, o grupo desmantelado contava
com perto de 21 mil simpatizantes. Entre os detidos nesta semana está uma juíza
federal e ex-parlamentar do partido de extrema direita Alternativa para a
Alemanha (AfD). Uma forte convergência do grupo alemão com operadores na
Rússia, além de sua afinidade ideológica com as teorias conspiratórias da
QAnon, sugerem que o extremismo de direita em países democráticos do Ocidente
encontra terreno fértil.
Vale registrar mais uma informação
divulgada pela Deutsche Welle: o cidadão Rüdiger, expulso da carreira militar
por ter traficado armas dos estoques do Exército da antiga Alemanha Oriental,
tem empresas registradas em seu nome em Santa Catarina e passava parte do seu
tempo no Brasil. Também aqui temos um “príncipe” da Casa de Orléans chegado a
uma conspiração. Além de um capitão que em breve estará mais ocioso do que
nunca.
À primeira vista, nada a ver. À segunda
também não, nem à terceira. Nazistas, porém, aqui não faltam. Pensando bem,
melhor virar logo o calendário.
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