sábado, 18 de fevereiro de 2023

Eduardo Affonso - A fantasia identitária

O Globo

Até o advento do politicamente correto, apenas à ditadura Vargas tinha ocorrido tentar domesticar o carnaval

Enquanto você lê esta coluna, possivelmente já houve a utopia do Céu na Terra, em Santa Teresa. O bloco desperta com o dia e segue os trilhos que levam do Curvelo ao Largo dos Guimarães.

Ali pelas 8h, o Flamengo estará animado, com os Amigos da Onça — um pouco antes de Copacabana, que só Empolga às 9h. Nesse horário, o Jardim Botânico já se Escangalha, e irrompe pela Primeiro de Março, majestoso, o Cordão da Bola Preta, com seu milhão, milhão e meio de foliões.

Porque é sábado de carnaval, haverá Terreirada em São Cristóvão, Filhos de Gandhi na Saúde, Ciganas Feiticeiras em Olaria. Imponderável como o seu lema, Yolhesman Crisbelles, a veneranda Banda — que já saiu com Leila Diniz, Clementina de Jesus, Aracy de Almeida, Clara Nunes, Grande Otelo, Nélson Cavaquinho, Cartola — tomará Ipanema.

Até quarta-feira, praças, largos, becos, ladeiras e avenidas do Rio serão do povo, como o céu é dos óvnis chineses.

Foram dois anos sem festa, sem fantasia. Durante esse recesso, arrefeceu um pouco a patrulha dos justiceiros sociais que queriam regular a folia. Na trégua forçada, assestaram suas baterias contra estátuas, pronomes, gêneros não marcados e falsas etimologias — e deixaram em paz os índios de esparadrapo, as ciganas da Casa Turuna e os homens que rompem a cortina de veludo para fazer uma saia.

Até o advento do politicamente correto, apenas à ditadura Vargas tinha ocorrido tentar domesticar o carnaval. Naquela época, se impôs às escolas de samba o ufanismo dos temas históricos. A repetição desses enredos, ano após ano, levou Sérgio Porto a compor o hoje proscrito “Samba do crioulo doido”.

A censura do bem, cria do século XXI, foi além daquela do DIP varguista. Se o órgão do Estado Novo só queria mudar o samba dali para a frente, a milícia progressista se impôs a missão stalinista de apagar os sambas e marchinhas daqui para trás. E dá-lhe cancelar Assis Valente, Lamartine Babo, Braguinha, Ary Barroso, Haroldo Lobo, Mário Lago, João Roberto Kelly.

A repulsa dos progressistas a negas malucas, gueixas e apaches cobertos de glitter não difere muito daquela dos conservadores diante do golden shower (lembram?). É uma declaração de superioridade moral. Sai “eu me preocupo com a família brasileira”, volta “eu me condoo com o sofrimento dos nipo-brasileiros, dos povos originários e dos afrodescendentes porque você vestiu quimono, botou peruca ou usou cocar”.

Os foliões que desembarcam na Central e economizam a passagem de metrô, indo a pé até a Primeiro de Março e a Cinelândia, não querem saber: se vestem de palhaço, cigana, policial, índio, preto velho. Tudo o que consta do índex.

Uma tese, que está para ser demonstrada novamente neste ano, é que, quanto mais Fridas e unicórnios houver num bloco, menos popular (no sentido literal da palavra) ele será. Porque esse “cuidado” não é empatia. É apropriação tribal da suscetibilidade alheia.

Só que o carnaval é tinhoso. Sobreviveu a Vargas, ao regime de 64, à pandemia e há de sambar nas cinzas da esquerda identitária. E segue democrático: na segunda-feira, há um ótimo bloco de gente desconstruída, o Filhes da Martins; na terça, um de gente libertária, o das Quengas. Só no segundo será possível cruzar com uma drag que veio, “montada”, de São Gonçalo — ou com um pirata com uma Janja no ombro.

 

15 comentários:

Mais um amador disse...

👏🏿👏🏾👏🏽👏🏼👏🏻👏

Anônimo disse...

Será que o colunista já estava aembriagado antes de "redigir" isto?

Anônimo disse...

embriagado

marcos disse...

o anônimo é um covarde; o daqui também é um FDP.

MAM

Anônimo disse...

Este colunista cada vez mais nos mostra que está mais capacitado pra participar dum BBB do que pro colunismo sério.

Anônimo disse...

"Politicamente correto é uma merda!", já dizia a Madre Superiora

Anônimo disse...

E todo quase anônimo marcos é quase covarde.

Anônimo disse...

Não basta conhecer as palavras e usá-las com alguma lógica. Tem que ter o que dizer! E aí o caro colunista fica se repetindo, combatendo os mesmos moinhos de sempre. Quanta diferença entre um colunista de verdade e um enfileirador de palavras!

ADEMAR AMANCIO disse...

Nada a declarar.

Alvaro disse...

Excelente texto! O Carnaval resiste aos tempos: sejam os de Vargas, os de 64 ou o dos politicamente corretos.

Guido disse...

Muito bem! E o índio ainda quer apito! E o Zezé?

Anônimo disse...

Não gostar de carnaval, como ocorre comigo, é uma coisa; tentar controlá-lo , reivindicando a propriedade da virtude, desde viés maníaco, é outra. Turma abominável , que seus integrantes se explodam, e sejam enterrado em buraco de fezes.

Anônimo disse...

Jerônimo o "Herói do sertão, é D'oxum!!!

Silvio Luiz disse...

Postado por Silvio Luiz fevereiro 20, 2023

C A R N A V A L

“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música” ~ Friedrich Nietzsche.

Eu li e vi ontem no UOL um manual ou sei lá o que posso dizer daquilo, algo policialesco mesmo, do que NÃO PODE e do que PODE usar no C A R N A V A L. "Carnaval" com letras em caixa alta e separadamente para reforçar-nos o significado disso.

Sei la, carnaval é o avesso, o profano, "o que não pode", a descarga mental e completa manifestação corporal (tanto é que a nudez, ou a quase nudez, é muito comum), as expressões musicais, a irreverência, o humor e tudo mais que nos faça desligar do cotidiano, da nossa vida desmascarada pelo resto dos 360 dias do ano - e no carnaval a gente usa as máscaras.

Ou, filosoficamente às avessas, os 360 dias a gente vive de máscara para uma vida relativamente chata, corrida, cíclica e rotineira; e quando no Carnaval, a gente tira essa máscara e liberamos desejos contidos e pulsões retidas que, por meio da arte, da criatividade, extravasamos: homeagemos o que na rotina achamos belo, ou digno, e que não alcançaríamos no dia-a-dia; louvamos o que nos é dito o ano inteiro que é profano, baixo e imoral - louvamos desde o lixo até ao resto do luxo (como diz a faixa da foto acima); tornamos o que é dito da loucura a nossa régua medidora; adotamos imagens daquilo que não somos, mas que queríamos ser - ao menos um dia; produzimos uma bela cópia do que os grandes artistas (famosos e anônimos) fazem nas avenidas, ou melhor, nos Sambódromos, desfilando oficialmente por uma Escola de Samba, mas o fazemos de modo caseiro, a nossa maneira. Carnaval é isso! Nos fantasiamos e saímos às ruas em busca das notas 10 em todos os quesitos. Portanto, rendemos e louvamos à diversidade, ao múltiplo e à ímpar e peculiar característica que possuimos: - repito - criatividade, senso de humor e irreverência.

E o que nos dizem ser o certo, o moral, o sagrado, o justo, pelos 360 dias do ano, nós - no carnaval - debochamos, fazemos críticas humorísticas, piadas, paródias, fantasias cômicas, beirando o ridículo, justamente por que isso é C A R N A V A L - a festa da carne, do humano ele mesmo, do indivíduo escondido lá dentro de si mesmo pelo resto dos 360 dias.

Fora isso, esta imposição politicamente correta - esta "censura do bem" -, não é carnaval. Não é o cidadão que espera, muitas vezes, 360 dias para a chegada do tão sonhado Carnaval. O que há agora e mais forte a cada ano, é uma ditadura do que se deve ser ou não ser; é querer controlar a vida alheia em prol de sua pequena vontade utópica, birra de criança, por fim, é o ressentimento das pessoas pobres de espírito.

Virgínia Tanajura disse...

Jerônimo, governador da Bahia, pediu que baianos não se fantasiassem de mulher, pois seria ofensa aos trans. Que não se fantasiassem de índios , pois seria também ofensivo, esquecendo dos blocos de índio . Que não se fantasiassem de Nega maluca, pois seria racismo. Ele estava na Bahia ou em Nárnia? Pura demagogia!