O Globo
Soluções simples e baratas, como colocar
bancos em corredores de blocos de apartamentos sociais, propiciam a prosa entre
vizinhos
“All the lonely people/Where do they all come
from?”, perguntava em 1961, com terna insistência, o refrão de “Eleanor Rigby”.
Pois foi justamente uma chefe de governo britânica, a ultraconservadora Theresa
May, que procurou responder à canção dos Beatles quase seis décadas depois.
Para espanto e descrédito generalizado, em 2018 ela criou uma nova pasta — o
Ministério da Solidão —, cujo nome oficial logo fez a festa em redes sociais e
programas de humor.
— Isso soa a eufemismo vitoriano para gigolô
— lançou o comediante Stephen Colbert.
— Poderia ser a criação literária de um José
Saramago, Haruki Murakami ou Gabriel García Márquez — arriscou Carmen Graciela
Díaz.
De lá para cá, a pasta já trocou de titular múltiplas vezes devido à óbvia dificuldade de pensar em estratégias de governo para um problema emocional e individual. Ainda assim, ao completar cinco anos de existência, o ministério já gerou filhotes no Japão e na Alemanha, criou demanda na Austrália e países escandinavos e integra definitivamente as preocupações do doutor Vivek Murthy, atual cirurgião-geral dos Estados Unidos, responsável pela saúde pública do país. Os argumentos de Murthy estão em recente relatório de 81 páginas: a solidão tem letalidade comparável à do cigarro para quem fuma 15 cigarros por dia e superior à do álcool pra quem consome seis doses diárias. Sem falar em possíveis desdobramentos numa série de doenças.
— Além de esmagar a alma, (...) a solidão
quebra o coração, literal e figuradamente — resumiu o colunista do New York
Times Nicholas Kristof.
Como as demais emoções, a solidão ou o
sentimento de isolamento social são difíceis de mensurar. Em consequência, o
êxito ou a inutilidade de intervenções destinadas a abrandá-los também são. A
mera elaboração de um questionário capaz de captar o desalento íntimo de
cidadãos já é complexa e exige dos recenseadores treinamento especial. Nesse
quesito, o Office for National Statistics britânico (equivalente ao nosso IBGE)
foi pioneiro, a ponto de captar o crescimento quase linear da solidão social
entre jovens de 18 a 34 anos. Na Alemanha, é o inverso: o perigo ronda quem já
ultrapassou a vida produtiva. O ambicioso programa interministerial A Connected
Society, publicado com a criação do ministério de Theresa May, elencou mais de
50 estratégias para enfrentar a solidão nacional. Alocou fundos para pesquisa,
contratou mais de mil funcionários públicos para conectar grupos comunitários,
levou a Cruz Vermelha a instruir carteiros de todo o país a reportar sinais de
isolamento social e muito mais.
Os resultados têm sido desiguais, claro.
Soluções simples e baratas, como colocar bancos em corredores de blocos de
apartamentos sociais, propiciam a prosa entre vizinhos. Abrir espaço, mesmo que
mínimo, para pracinhas compartilhadas, instalar iluminação quente no lugar do
branco hospitalar em estruturas públicas também. Médicos foram instruídos a
prescrever atividades sociais, em vez de receitar remédios, e iniciativas
locais receberam financiamento. Para a recente coroação do Rei Charles, o
Ministério da Solidão organizou uma ação de voluntariado que fez sair da toca
mais de 6 milhões de pessoas sem convívio social. Do outro lado do Atlântico, o
cirurgião-geral adverte: se os Estados Unidos não tomarem medidas concretas, os
que se sentem excluídos se retrairão ainda mais — e estarão mais zangados, mais
doentes, mais à deriva. No Japão, onde uma conferência interministerial de
emergência resultou dois anos atrás na criação do Ministério da Solidão e
Isolamento, o enfrentamento da dor social é ainda mais difícil. Culturalmente
enraizado na sociedade quase como virtude, o isolamento ainda é visto como algo
estritamente pessoal, privado e de responsabilidade intransferível.
É de Julio Cortázar, na obra-prima “O jogo da
amarelinha”, a descrição da “solidão absoluta que representa não contar sequer
com a própria companhia, ter que entrar no cinema ou no prostíbulo ou na casa
dos amigos ou numa profissão absorvente ou no matrimônio para estar pelo menos
só-entre-os-demais”. É dela que devemos tentar arrancar quem está ao alcance de
um esforço nosso. A sociedade como um todo agradece. Solidão não é solitude — a
primeira corrói a alma, a outra, por opcional, pode ser linda.
3 comentários:
Adoro ficar sozinho.
Eu também!
Que é isso de 'a solidão tem letalidade comparável à do cigarro para quem fuma 15 cigarros por dia'??
Qualquer Deus é só. E imortal!
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